segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Morreu Outubro

Aquando da morte de Outubro, Novembro decidiu revelar o ensaio crítico que elaborou acerca daquela pessoa, avaliação efectuada ainda a meio de Setembro.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Outubro é um pai que regressa.

Fugido de amores furtuitos,
volta para os braços da mulher.

E de mais quem quiser.

Tem pirralhos que chamam por ele,
gritam por atenção.
O pai abraça-os a todos e suplica por perdão.

De dentro do seu fato,
impecavelmente engomado,
ainda bate um coração.

Conta histórias à noitinha,
embala os filhos na lareira.
Dorme a noite inteira.

E assim é Outubro,
pobre homem envergonhado,
enfim perdoado."

Morreu Setembro

Aquando da morte de Setembro, Outubro decidiu revelar o ensaio crítico que elaborou acerca daquela pessoa, avaliação efectuada ainda a meio de Agosto.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Setembro é um caso mal resolvido.

Não é carne nem peixe,
não é homem nem mulher.
É um ser híbrido, muito mole.

Nunca tem opinião,
nem aprendeu a dizer não.
Dizem que vive a vida assim.

Torna-se aborrecido só de saber que existe.
Só dá pena a incerteza e saber que vive triste,
numa capa de pêlo sem forma nem feitio.

Dizem que não se decidiu.

E assim é Setembro,
na sua eterna questão,
sem qualquer opinião."

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Os estranhos também amam

Aos 23 anos, Fernando Tita Ferreira conheceu aquele que viria a ser o amor da sua vida. Foi ao comprar cigarrilhas, na Casa Havaneza, em pleno Chiado. Nunca a tinha visto ao balcão até aquele dia e, surpreendentemente, nunca mais a voltou a ver. Nem quando regressou no dia seguinte com a desculpa de comprar fósforos. Ela já lá não estava.

Talvez fosse amiga ou parente de um dos funcionários, estando apenas a fazer umas horas como favor, Fernando nunca soube ao certo. Mas era uma fonte de frescura que refrescava só pelo olhar. Cabelos dourados presos num carrapito, sardas na face, lábios reluzentes, tudo o que fazia lembrar a Primavera num único corpo de mulher. Corpo esse que aguçava a curiosidade, por entre as formas da camisa de linho branco, e fazia crepitar a gula do sósia pessoano.

Nesse mesmo dia, e sem ter trocado mais do que meia dúzia de palavras com ela, Fernando sabia que estava apaixonado. Que iria amar aquela mulher até ao último dos seus dias.

Materializou esse sentimento num pequeno poema que viria a escrever por volta das duas da manhã, enquanto combatia a insónia recorrente.



Do teu estranho amor por Fernando Tita Ferreira, 1982



Estranho
o Mundo.

Não só a palavra mas tudo.
A sua forma e conteúdo,
é tudo estranho para mim.

Abro os olhos e é estranho.
As cores, as formas, os sons,
os corpos das pessoas, os tons
que usam, que mostram,
que tanto mistério tem
e a forma como movem.

É tudo estranho para mim.

Mas há um raio de luz.
Não sei o que quer dizer.
Mas se a certeza não vier
para mim não é coisa estranha,
é a vida que quer saber.

E é só por isso...
mesmo só por isso,
que escolho viver.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

suicídio

está decidido! vou imolar.me dentro de um balde de praia trancado. é seguramente a única maneira de me perseguir com alma e conquistar eternidade. está decidido!

domingo, 6 de setembro de 2009

Morreu Agosto

Aquando da morte de Agosto, Setembro decidiu revelar o ensaio crítico que elaborou acerca daquela pessoa, avaliação efectuada ainda a meio de Julho.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Agosto é um turista refilão.

Sua abundantemente
porque gosta de confusão.

Tem os sovacos molhados,
camisa colada
e cheira pior do que mal.

Mal educado e violento,
fica vermelho ao esbracejar.
Não conhece o seu lugar.
Nem sequer sabe estar.

Conduz nervosamente
e sempre directo ao Sul.
Depois leva tudo à frente.
Come sofregamente,
na véspera de ir nadar.

E assim é Agosto,
na sua fúria endiabrada,
de chegar sem saber estar."

Morreu Julho

Aquando da morte de Julho, Agosto decidiu revelar o ensaio crítico que elaborou acerca daquela pessoa, avaliação efectuada ainda a meio de Junho.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Julho é a irmã mais velha.
Uma senhora,
uma mulher,
mais para mais encantadora.

Rejubila num vestido
muito leve e florido.
De um bonito colorido.

É bom vê-la rodar assim.

Tem uma voz calma,
calmante.

Chamamento quente e sonante,
parece chamar por mim.
Mas é de todos os que a ouvem
num bater de asas suave.

E assim é Julho,
com flores secas à cabeça,
melodias na cabeça
que divertem ao passar."

terça-feira, 11 de agosto de 2009

As últimas palavras de Fernando Tita Ferreira

Este é o último poema que Fernando Tita Ferreira terá escrito.
Não se lhe conhecem as últimas palavras, como tal tomam-se estas como as suas derradeiras. Tudo o que terá ficado por dizer, relata quem estava presente, esvaiu-se com um suspiro.



Sem Título por Fernando Tita Ferreira, 1959



Sinto laivos de vida violenta em mim.
Veias que vermelham e pulsam em tons de negro.

Pulsa a vista também,
ou aquilo que a vista tem.
Continuo sem conseguir dormir.

Várias vezes os fechei e as pestanas sem cerrar.
Pisco uma, duas vezes.

Nunca mais.

Nunca.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Finado

Só voltei a mim quando a primeira terra, mais húmida, me apanhou a cara e o sabor. Acordei com o ritmo do ferro na areia a raspar e a agarrar o que podia para me atirar para cima. A tempo de perceber que algo me cobria.

E quando voltei a mim estava de uma sonolência tal que nada fiz para me levantar.

A perfeita consciência de saber que ali deveria ficar Silencioso Imóvel num receio de me apagar Mas numa ânsia Nunca antes vista de Enfim descansar.

Ora ali fiquei Ainda a tempo de perceber a luz escassa de uma lamparina Velha de enterros da idade das viúvas

Que me mostrou as pernas uma em cima da outra, os braços, curvados Cravados no peito e uma camisa amarelada de suores antigos.

As vozes lá em cima Uns motores e eu num Ora deixa-me estar mudo Que me justificava qualquer dúvida E o ali estar.

Qualquer pânico que se me aparecesse por só ver o mundo num rectângulo cada vez menor.

É apaziguante saber que não precisamos de fazer nada.

Enfim os músculos descansam e falam connosco. Finalmente nos olhamos nos olhos e acenamos.

Foi isto.

Foi isto de para lá e para cá. De pessoas maiores e menores Dias iguais.

Isto de se esperar e correr atrás. Fugir e deixar-se apanhar. Julgar-se e dar-se a julgar.

Isto de nunca parar de rodar.

(a terra cada vez mais seca esconde-se-me nos bolsos Mistura-nos e faz de mim mais mundo que alguma vez fui)

Ora foi isto de assim Por aqui passar.

Levo a mão aos cabelos que correm para a cara Acordados e asfixiando

Sinto-me ainda homem e capaz de assim me mostrar.

Levo a mão até onde o peso me deixa e descubro ao que nunca vou voltar.

Foi isto.

Mil imagens no cheiro a chão. Outras mil no pouco ar que mantém o coração.

Aquela e aqueloutros

Todos no mesmo sítio

Expostos Prontos para o acenar.


E eu

Valente

Tapado de pés Estradas e ventos.

Sorridente por ser isto e muito mais. Por não ter de ser mais nada. E por não poder ser mais nada. E muito por saber o que foi tudo.

Deixo-me aqui estar.

terça-feira, 21 de julho de 2009

o estrangulador das escadinhas da fonte

a primeira parte da minha vida
a vida da minha primeira parte
a parte da minha primeira vida
a minha parte da vida primeira
foi e será sempre a morte: matar e morrer

quinta-feira, 9 de julho de 2009

O Diálogo inédito de Sócrates


Após a sua detenção, já com idade bastante avançada, o mafioso Don Serôdio sofreu um período deveras traumático, derivado de uma violenta queda que sofreu na sua cela. Por ter batido com a cabeça em cheio no beliche, passou uma semana entre a vida e a morte, sofrendo inúmeros delírios. Quando recuperou, contou uma série de histórias incongruentes, directamente relacionadas com o seu estado crescente de senilidade e com a própria lesão craniana. Não viria a viver muito mais tempo, morreu cinco semanas depois em circunstâncias pouco claras, vítima de asfixia. 

No entanto, antes de perecer, relatou uma das suas experiências pós-morte: um diálogo que terá presenciado in loco, entre José Sócrates e Deus, durante a festa de aniversário deste último. Segue a transcrição exacta que o psicanalista do presídio efectuou dos relatos do decadente Don Serôdio.


"Seguido por São Pedro, Jesus Cristo está numa autêntica pilha de nervos em plena festa de aniversário do Pai. Dá ordens aos empregados, prova os canapés, ajeita as flores, perde-se em mesuras e rococós perante tão ilustres convidados. São Pedro finge preocupar-se com as mesmas questões, mas não faz mais do que fingir. Está preocupado com as chuvas de Abril. Este ano quer esmerar-se para provar que ainda tem a estaleca de outros tempos. Enquanto manda servir o queijo de cabra a Madre Teresa de Calcutá e Mahatma Gandhi, que privam em amena cavaqueira, Jesus caminha em direcção ao Pai que dormita no seu trono de nuvem. Todo o céu está engalanado perante tão gloriosa ocasião: o aniversário do Todo Poderoso.

- Pai, Pai, acorde. – ordena J.C., embaraçado. – Não tem vergonha de estar aqui a dormir?

- O que é que queres dizer com isso?! Sendo eu omnipresente pode-se dizer que quando 
adormeço, adormeço sempre em todo o lado. – Deus penteia as longas barbas brancas com a mão. – Hoje não estou com “saco” para fazer sala. Aviso já.

- Eu não quero saber disso para nada. O Pai quis convidados à altura e eles aqui estão. Não seja mal educado. – Cristo faz finca-pé perante a teimosia do velho.

- Já a formiga tem catarro! Está bonito está… Não fosse eu Deus e já estava enfiado num lar. Com pouco mais de dois mil anos e já me responde, o fedelho.

- Haja paciência. – suspira Cristo, sorrindo aos convidados. – Ao menos tenha uma conversa com um deles, Pai. Parece mal estar para aqui a ressonar e a babar-se na nuvem. Hão-de dizer que está senil. E com razão…

- Senil, eu?! Está bonito está… Não fosse eu Deus e já estava enfiado num lar. Com pouco mais de dois mil anos…

- Já sei, já sei! Cale-se, porra. – Cristo quase perde a paciência. – Vá, tenha uma conversa com alguém, por favor. Socialize.

- Uma conversa? – Deus puxa pela cabeça. – Olha, quem era danado para as conversas era aquele filósofo ateniense, o Sócrates. Era um grande conversador, não haja dúvida. Vai lá chamá-lo.

- Mas o Pai tem a certeza que o Sócrates que convidou é o tal grego? – Cristo analisa o primeiro ministro português de longe. – É que estou aqui a topá-lo… Fatinho escuro, ar de pintas, conversa fiada… Não será um aldrabão qualquer?

- Mas qual aldrabão?! Então eu não sei quem é que convido?! Vai lá chamá-lo, já disse! - Deus levanta um pouco mais a sua voz de trovão, o que provoca um ligeiro “sururu” entre as visitas.

Seguido por São Pedro, Jesus Cristo dirige-se então a José Sócrates e aponta para o trono de nuvem com uma expressão desolada. Sócrates fica radiante quando se apercebe da importância do momento e aproxima-se de Deus com um grande sorriso na cara.

- Eu só quero dizer, não só a Deus como a todos os ilustres convidados, que é para mim uma verdadeira honra, e um privilégio também, estar aqui entre os presentes. - Sócrates faz uma vénia exageradamente demorada.

- Está bom, está bom. - sussura o Todo Poderoso, incomodado. - Vá, erga-se e venha aqui sentar-se ao pé de mim para dois dedos de conversa.

- Ah, e não quero deixar de referir, não só a Deus como a todas as figuras históricas aqui no Céu, que não me importo nada que tenham feito cair um piano em cima da minha cabeça durante o meu jogging matinal. Tudo para poder estar aqui convosco.

- Como assim? - pergunta Deus, a coçar a nuca.

- Ora, como é sabido, não só por vocês como por todos os desempregados portugueses, eu estava vivo e bem vivo. - Sócrates mantém o sorriso amarelo.

- Vivo?! Eu já ando a fazer confusão com as datas. É da idade. – o Criador faz sinal a um dos anjos para que lhe sirva um copo de espumante. – Então como vão essas filosofias, ó Sócrates?

- Vão bem, muito obrigado. Tive sempre vinte à cadeira na faculdade. – Sócrates beberica a bebida com ar guloso. – Nos bons velhos tempos da Independente, sabe?

- Pois, em Atenas sempre foi tudo muito independente lá com a democracia e tal… só acho que eram demasiado imaginativos com os deuses. Havia deuses para tudo. Não se contentavam só com um?

- Note que, em Atenas como em Lisboa, respeitamos Deus e a democracia. – Sócrates baixa um pouco um tom de voz. – Se bem que em Portugal até tendemos um bocadinho mais para os seus lados. Gosto de manter a democracia um tudo nada menos omnipresente, se é que me entende.

- Concordo contigo, ó Sócrates. Aqui no Céu também há uma hierarquia bem definida como tu sabes. Tudo muito bonito, sim senhor… Asinhas e auréolas para todos, não há dúvida… Mas quem manda é cá o “je”. – sussurra Deus, fazendo um brinde com José.

- Ora, nem mais!

- Agora diz-me cá. Portugal? Então a Grécia não te chegava? – pergunta o Todo Poderoso, enquanto limpa as barbas depois do gole.

- Chegou-me bem na final do Euro. A mim e aos portugueses, coitados. Andavam todos contentes com as bandeirinhas nas janelas… Nem reparavam naquilo que eu andava a fazer. Ainda aproveitei para efectuar muitas trafulhices na altura que ninguém dava por nada. – Sócrates esboça um sorriso malicioso.

- Percebo o que queres dizer. Eu também gosto de efectuar trafulhices de tempos a tempos. E para isso não há melhor sítio que Portugal, não é? – Deus solta uma gargalhada ruidosa.

- Pois é. Olhe como o caso Freeport! – concorda o primeiro ministro.

- Esse não conheço. Mas também é natural, hoje em dia vocês são cada vez mais e eu não dou conta de tudo.

- No entanto, deixe-me dizer-lhe, com toda a certeza aliás, que continua a ostentar admirável forma física. – Sócrates apalpa a perna direita de Deus. – Também costuma fazer jogging?

- Mau! Guarde uma distância de segurança, se faz favor. Vocês da Grécia antiga são muito dados às mariquices e estas barbas não são a fingir! – grita o Criador com cara de poucos amigos.

- Grécia antiga? Tem piada. – Sócrates massaja o queixo, pensativo. – Já que gosta assim tanto de História, e já agora também tive vinte nas cadeiras da faculdade, ouviu falar no Magalhães?

- Não ouvi falar em nada. Estou sempre muito ocupado. – responde Deus, aborrecido.

- Ah, então precisa imediatamente de mandar vir uns quantos de Portugal para implementar aqui no Céu. Faz maravilhas com a educação dos mais novos.

- Óptimo, mande-me entregar então aqui um que Jesus não faz mais nada senão curar leprosos e lavar os pés aos apóstolos. Parece obsessão, pá. Assim sempre se distrai com alguma coisa. – Deus aperta a mão de Sócrates, como que a despaxá-lo.

- Assim será, de acordo com a Sua vontade. – José aproveita o cumprimento para entregar a Deus um crachá do PS, um queijinho da Covilhã e um panfleto intitulado “Como deixar de fumar em aviões fretados pelo Governo Português”.

- Vá, volte lá à vida e à epistemologia que já vi que de ética e virtude não tem muito. – declara o Todo Poderoso antes de fazer Sócrates desaparecer numa explosão de luz.

Os restantes convidados aplaudem o espectáculo de pirotecnia. Uns por isso e outros porque não queriam voltar a aturar a conversa do antigo aluno prodígio da Independente. A cerimónia prossegue. Deus boceja e volta a adormecer profundamente enfastiado."

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Tragédia



A mão.

O ponto.

A natureza.

O ângulo.

O mar.

A lingua.

E o peso.

Todos mortos.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Morreu Junho

Há dois dias morreu Junho.
Julho avaliou-o a meio de Maio e, na altura, elaborou um ensaio crítico acerca da sua pessoa.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Junho é o irmão mais novo.
Salta dentro e salta fora,
mergulha em ondas claras.

Depois ri-se, satisfeito,
e faz uma dança às claras.

Enquanto espera pela noite.

Todos gostam dele,
quem não gostaria?

É romântico,
muito lânguido,
atira beijos salgados.
Provoca sonhos apaixonados até ao ano que vem.

E assim é Junho,
na sua forma tentadora,
uma brisa apizaguadora que chega ao entardecer."

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Noite em branco


De todas as vezes que sonhei acordado,
e sempre que acordei a sonhar, 
avistei infinitudes finitas,
que bailavam como sombras estranhas, 
e agitavam-se como labaredas, 
só que sem luz,
só escuro, 
sem pressa de me fazer levantar, 
sem urgência de me obrigar a viver, 
silenciosas e cínicas, 
dançavam até de dia, 
sem vida nem morte nem nada.

Farrapos pretos de uma noite branca.

Noite em branco.

Que o é porque grita sussurros.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Morreu Maio

Ontem morreu Maio.
Junho avaliou-o a meio de Abril e, na altura, elaborou um ensaio crítico acerca da sua pessoa. 
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Maio é uma velha com mil filhos.
E sempre que olhamos para ela, 
está à espera de mil mais.

No adro da velha igreja, 
dá pãozinho aos pardais.

Veste preto, com ar doce, fala dos dias que aí vêm.
Dá esperança a quem passa, dá alento a quem quer.
E sente quente lá dentro quem fala com esta mulher.

Muito velha,
com mil filhos.
Sem nenhum querer perder.

E assim é Maio, 
nobre mãe, 
que fala do calor que aí vem."

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A ratazana branca

Vitória Sanfim chegou a sussurrar o seu último pesadelo antes de morrer.
Tinha acabado de acordar e os seus olhos estavam mais negros e encovados do que nunca. Já pouca era a vida que lhe restava no corpo.

"Sonhei com uma ratazana branca.
Muito feia e desgrenhada.
Reles, pulguenta e manca.

Passou por mim a correr esquiva
e enfiou-se na minha cama.
Para sujar o leito de lama.

Tinha urgência em morrer. E eu de adormecer.
Tentei bater-lhe com a vassoura e ela foi-se porta fora.

Fiquei só 
de hora a hora.

Também assim a minh´alma: reles, pulguenta e manca.
Tinha urgência em morrer.

Sonhei com uma ratazana branca."

quarta-feira, 13 de maio de 2009

de petuchki a moscovo

em petuchki, começa em segundos a transmissão de um cancro tímido e sibilante.
erofeev, o mosquito debutante pelas ruas da cidade, é o agente encarregue de tão imprevista actividade.
ganhou o estatuto pela sua natureza e não por casual favor.
de bico pontiagudo e corpo rijo mas delgado, com faro para a carne humana e mestria de toque, iniciará a transmissão do surto presa a presa sem delongas.
e é assistir, a partir de agora em directo ou depois deste momento em diferido [conforme a opção e oportunidade], ao declínio da sociedade.
primeiro os velhos, depois os mais fracos. de seguida os mais novos e as mulheres. e finalmente os mais fortes.
de tão ordinários, tornam.se presas fáceis. de corpo a esqueleto. de esqueleto a carcaça. numa espiral de decadência redundante.
um a um. uns a seguir aos outros. todos. são consumidos como cornijas de papel em fogo, por agonia, em paralisia e sem capacidade de debate.
o cálculo dá certo. o resultado satisfaz a expectativa. zero.
e a partir de petuchki, erofeev inicia o périplo para moscovo. em mistério, é acompanhado somente pela sua sombra, num rasto de luz sem bandeira.
pelo caminho, a civilização vai desaparecendo em ressaca.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Episódios insólitos da vida de Vladimir Kükas (1)


Vladimir Kükas morreu em 1987 enquanto urinava na WC do seu local de trabalho. 
Foi atacado por um lince ibérico sem ter tido tempo de apertar a braguilha. 

Nunca mais ninguém avistou o lince ibérico responsável pelo homicídio. Assim como nunca ninguém conseguiu explicar o que estava ele ali a fazer.

Apenas mais um episódio insólito na vida de Vladimir Kükas, como muitos que teve ao longo da sua curta existência.

Nasceu em 66, no Barreiro. Era suposto ter-se chamado José Lopes, mas devido a um engano no registo, causado por uma mulher de longas barbas que apareceu montada numa girafa de meio metro com cabeça de lebre, outro episódio insólito, acabou por adoptar o nome de um reformado soviético que gostava de filmes de animação.

Vladimir Kükas não foi feliz em vida. Nem em morte. 

Pode dizer-se que foi, todo ele, insólito.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Morreu Abril

Ontem morreu Abril.
Maio avaliou-o a meio de Março e, na altura, elaborou um ensaio crítico acerca da sua pessoa.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:


"Abril é um puto mentiroso.
Traquinas e sebento, de rosto lambuzado.
Blusão de penas aberto, a deixar entrar o frio que o torna constipado.
Mas nem assim menos travesso.

Gosta de enviar bilhetinhos,
com manias de conquistador.

Mas só conquista a dor nos outros com o seu jeito atrapalhado.

Com um ar abananado de pelintra descuidado.

E assim é Abril,
cheio de enganos e de chuvas,
que enganam os trovões."

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Os elefantes também se abatem

Uma confissão de Vitória Sanfim no leito da morte.
Episódio ocorrido em Trás-os-Montes, no final da década de oitenta:

"- Sou um elefante! - a velha abraçou-me e deu-me um beijo terno.
Chorei de tanto rir. E bati-lhe a seguir.
- Dona Aurora, um alguidar na cabeça não faz de si um elefante..."

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Eu sou um ovo cozido!

Ezequiel Redondo passou a vida inteira a acreditar que era um ovo cozido.
Seria louco? Teria ele uma obsessão? Os vizinhos não sabiam, apenas repetiam que nunca tinham tido melhor vizinho.

“- Era um homem muito pacato, sossegado…”, diziam eles.
E era, de facto.

Ezequiel Redondo, na sua insana visão de si próprio, passava os dias sentado na cadeira de balouço, a pensar em nada, sem fazer nada. Tudo porque, segundo ele, era isso que se esperava de um ovo cozido.

Um dia recebeu a visita de uma equipa de reportagem, uma jovem jornalista e um operador de câmara entraram-lhe pela casa adentro. Queriam entrevistá-lo para a televisão. Mas ele nada disse, limitou-se a olhar para eles, enquanto se balouçava na cadeira.

A repórter, inquieta, insegura, perguntava:
“- Um ovo cozido humano?! Coisa nunca vista! Quer comentar?”.
Sem sucesso, nem uma palavra.

Até que, numa manhã cinzenta, aconteceu uma mudança radical.

Ezequiel Redondo levantou-se da cadeira, despiu-se lentamente, quase como em câmara lenta, gritando ao mesmo tempo:
“- Eu sou um ovo cozido!”.

Depois, começou a arrancar a própria pele, a descascar-se como o ovo que acreditava ser, sem chorar nem gemer, com uma expressão terna no olhar.

Os vizinhos assomaram logo à porta, curiosos do que se estava a passar, preocupados pelo destino incerto do seu companheiro mais sossegado.

O senhorio achou que o grito aflitivo que ouvira, tão estranho e aterrador, era razão suficiente para arrombar a porta. Com um pontapé resolveu o assunto.

Encontrou Ezequiel Redondo feliz, meio vivo, meio morto, meio aluado, já completamente descascado.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Bernardino Roupão em terapia de regressão (1)


Poucos meses antes de morrer, Bernardino Roupão recebia em sua casa um hipnotizador para dar início a uma série de sessões de terapia de regressão. O objectivo era descobrir como é que o casal Roupão se tinha tornado tão incrivelmente entediante, sem um único resquício de aventura ou sentido de humor. Apenas se riam com Manuel Luís Goucha, o "monstro sagrado" da comunicação que, com as suas roupas fluorescentes, lhes animava as manhãs todos os dias. 

Bernardino Roupão queria descobrir a razão de tanta pobreza emocional. E essa curiosidade deu lugar a uma série de relatórios que descreviam na íntegra os relatos do velhote durante as sessões. Quando morreu, o diagnóstico estava feito mas nunca foi revelado. Dado o desinteresse da senhora Roupão, acabaria por ser destruído sem que ninguém, para além do hipnotizar, soubesse no que consistia.

Aqui fica um excerto das palavras proferidas por Bernardino Roupão no dia 13 de Março de 2004, Sábado, cuja sessão decorreu das 15h às 16h30 na moradia do casal.

"É um telemóvel bastante invulgar, demasiado infantil ou efeminado ainda não decidi, aquele que trago no bolso do casaco. 
Tem uma capa de peluche em forma de ursinho amarelo. Tão querido…
Mas para que é que eu fui apanhar esta merda?!
Não o quero para nada. Não tenho filhos nem sobrinhos, até mulher ou namorada que apreciem coisas destas. Não tenciono ir entregá-lo à polícia, com certeza que se poriam logo a gozar. Desde o sub-chefe Silva ao Mendonça do reboque. Mais vale deitá-lo no lixo de vez. Como é que um objecto tão pequeno consegue causar-me tanto desconforto?
Ai, agora está a tocar. A música do Ursinho Misha. Que grande surpresa.
Não, não vou deitá-lo fora. Vou atender e descompor a menina de coro que o perdeu. Para que nunca mais perca esta imbecilidade, ou outra qualquer que possua.

- Estou sim!

- Estou. – responde uma voz anasalada, pouco semelhante à de uma criança normal.

- Olhe, aproveito já para dizer que este telemóvel não é meu. Encontrei-o no chão e espero poder devolvê-lo ao dono o mais rápido possível. Não tenho por hábito falar para ursinhos de peluche, sabe?!

- Nem você nem ninguém, meu amigo. É por isso que me sinto tão só, sabe? – a voz de tão estranha quase que deixava de se ouvir, como a de um boneco animado. – Já agora, tenho o prazer de estar a falar com…

- Bernardino Roupão. Mas quem é você? Sabe onde posso encontrar a dona deste aparelho?

- Muito prazer, Bernardino. Eu sou o Ursinho Tédio… Tédio Bear se preferir. – a conversa estava a tornar-se bizarra. – Costumo perder-me por aí à procura de alguém com quem trocar impressões. Não acontece muitas vezes, dizem que sou chato e que não tenho conversas interessantes. Que provoco o tédio. Por isso, evitam falar comigo e daí eu estar sempre a morrer de tédio… Eh eh eh tem uma certa graça… Estou?

- Estou sim. Isto é uma brincadeira? Vou deixar o telemóvel no banco do jardim, ok?

- Não faça isso! Junto aos pombos, não! – o aparelho parecia berrar de dor enquanto o pousava nas tábuas verdes do assento.

Que dia estranho. E, ao mesmo tempo, entediante."

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Grito mudo

Eu, Paulo Paz, guarda prisional do Estabelecimento Prisional de Sobradeus, Castelo Branco, deixo a transcrição das últimas palavras de Caio Deitado, recluso cego, condenado por homicídio involuntário, falecido a 6 de Abril de 2009.

 

“Por favor, não me deixem aqui.”

 



A última confissão do padre McCallister


Poucos dias após o falecimento do padre católico Jim A. McCallister, foram enviadas duas cartas anónimas de igual conteúdo: uma para o jornal da aldeia natal de McCallister e outra para a Santa Sé.

Um mês depois, o jornal publicava o texto integral da carta:

O amor tem destas coisas: por vezes acaba sem termos tido tempo para o semear como deve ser. Era de manhã cedo quando o padre McCallister me desafiou para ir com ele ver o mar. Do interior do seu imenso anorak recheado de penas de pato, aquele que o fazia assemelhar-se a um grande e obtuso boneco da Michelin, atirou duas pedrinhas à janela do quarto para me fazer acordar com o barulho. Preciso de me confessar. Coisa estranha, pensei eu. Um homem de Deus não se confessa senão a Ele. Eu não era mais do que um acólito. Vá, anda daí, as ondas e as gaivotas esperam por nós. Não é correcto fazê-las esperar. E eu lá fui, contrariado. Cheio de sono e vazio de vontade de o ouvir. Ainda por cima, ele hoje estava particularmente filosófico. Não me agradavam nada os jogos de palavras àquelas horas da madrugada. O que quer dizer com isso? Que eu saiba o amor sente-se bem no meio do peito: é ferida profunda que faz rir e chorar. Não é algo que se semeia. Precisava de contrariar o velho, de deitar por terra aquela conversa barata, aquela toada derrotista. Dediquei toda a minha vida à protecção de um sentimento, para impedir que abandonasse o meio do peito de milhões de pessoas. O que achas disso? Não respondi, não achava nada. Queria voltar para a cama e dormir sobre o assunto. Durante muitos anos, antes de ser padre aqui, viajei por todo o mundo “pela mão” da Santa Sé. A minha missão era preservar o elo mais puro das gentes: aquele que constroem com Deus. McCallister falava com um misto de orgulho e arrependimento. De cada vez que suspendia um suspiro, ocultava um soluço, escondia as mãos trémulas nas algibeiras, eu tinha mais e mais certeza de que aquele momento estava a tornar-se importante. Eu forjava milagres, meu filho. Inventava-os. Era esse o meu trabalho: engendrar estatuetas para que chorassem sangue, hipnotizar pessoas para que vissem anjos, manipular os sentidos para proteger o amor. A minha obra foi o engano. Nunca tinha visto o padre tão nervoso, a sua respiração ofegante causava-me aflição. Procurei reconfortá-lo. Pobre velho ruído pela culpa. É duro descobrir a verdade, meu rapaz. E saber que esta fala de tudo menos de esperança. Levei McCallister de volta para a sacristia, não antes de lhe dar o meu perdão. Tive pena dele. Não temia a morte, temia perder a fé pouco antes de partir. O que sempre temera, acabara de acontecer.

domingo, 5 de abril de 2009

César

decidi aprender espanhol após ser aliciado por um vagabundo despido de restos de cetim.cola debruados a ouro que se apetrechavam como uma vulgar matriosca entreaberta na farpela baptismal de uma igreja hipotecada por leis antiquadas e ultrapassadas por formas quânticas de velocidade.som confrontadas por informações virtuais e verticalmente inseridas na diagonal do horizonte gestual da linguagem portuguesa praticada nas antigas colónias citadas nos melhores livros com as piores encadernações das estórias que conquistam quaisquer graduados pelo exército de letras pequenas automatizadas pelas citações bérberes endémicas venenosas dotadas de pouco cristianismo porém bastante altruismo supracitado numa paralisia de bonequinhos de porcelana apagados por demasiado toque de lesa.pátria redundante de riscas pretas oferecidas por entre oito hipóteses escolhidas pelo acaso de uma situação debilmente extinguível formada por focos de incenso que só se espalha pela noite do primeiro dia do último segundo do próximo ano de meio do milénio emparelhado numa teia de animais.homens.meninos.crianças.bebes.recém.nascidos a partir de um ventre rasteirado por impotente diáspora de cogumelos que se enfrentam num campo de girassóis optimizados em buracos de golfe sem bolas mas com trapézios de um circo circular polar antártico de guloseimas primaveris lacrimejantes e depois de um sonâmbulo escritor romper a própria veia da criatividade numa aparente tentativa de suicídio mal consumada por falta de sangue suficiente para ficar sem sangue e sem forças e sem respirar e sem tentações e sem sensações e sem consciência do próprio ser que se ama no meio de uma floresta de lírios vegetais inocentados num piquenique vegetariano sem modos de educação subscrita em pacto de força que grasna para respirar num atentado corriqueiro e manchado por eczemas satânicos de um cabo que deu cabo do pior amigo inimigo do melhor amigo cuja traição levou à ditadura e consequente deposição de flores em dia próprio por todos os confrades da distância mono.parental equidistantemente medida por vaios de cuspo católico de um padre inocentado no chão de desavinda amálgama titulada num retorno passageiro famigerado por ziguezagues mórbidos de tentações encavalitadas numa estrada soterrada perto do teatro dos comunas da comuna na praça de espanha de lisboa ansiã guardiã desta nação hipotecada por cada desvio de grupos de lacraus em nome próprio indirectamente condicionados pela junta de freguesia outorgada com o prémio de mais limpa na escala de richter eterno retornado que se embriaga para se encharcar com aquosos olhos de apitos a meio de uma partida partilhada de bilhar formoso na pálida construção de uma europa segura e originalmente institucionalizada por entre esgares titubeantes de frinchas impetuosas distribuídas por mesinhas de licra predispostas a sexo anal anual pelo mal e uma ligeira conspurcação acometida de diferendos importados sem importância da improvável instância carnívora parcialmente desenhada com o mijo suado de uma maçaneta sustenida daltónica utilizada rudimentarmente na traseira da dianteira de uma carteira sem canteiro que proteja da chuva a biografia do homem que se senta desde há vinte e três anos para cá todos os dias no mesmo banco da mesma estação a cochichar com estranhos seres unicamente visionados pelos seus estrábicos olhos que cheiram como o minotauro contemplador sem contemplações pela crise agrícola do garrafão esférico abandonado num selo do carro colado no assento de uma mota com quarenta rodas todas pontinhos escuros de amálgama biscariante acentuada num ambiente descontraído de trabalho de promoção de inscrições cibernéticas num determinado portal precedido de três duplos.vês inusitados por sinuosa sinusite crónica migrada pelos excrementos evitados acutilar de desordenada bifurcação tripla par de pediatras orgulhosos da sua retórica amputada num frenesim turístico de caixeiro pouco viajante mas bastante caixa de óculos com paletes e alteres do chão ao tecto passando pela portagem da vida e encostando a própria vida por migalhas que fazem espirrar colonos assimétricos medidos com régua esquadro do picasso que outrora foi tão íntimo de uma asa partilhada por duas borboletas gémeas e com um terceiro coração financeiro que soltam recursos estilísticos barra literários numa feira de enchidos com sacos vazios de venenos e micróbios vorazes capazes de datar em pranto prontas alienações de terrenos visados por avisos fluorescentes pintados em apneia numa catadupa de anti.gravidade geral das partículas da minha pequena irmã mais velha resultado de anos de luzes em contra.mão sorteadas nas têmporas do meu paizinho também filho mas desigual em volume da gástrica dimensão do gerúndio camafeu impregnado em estóicos pepinos descascados por unhas animais de pesticidas canibais do dormente. Matei porque deixou de me amar!

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O fino

Fernando Fino amaldiçoou o seu nascimento desde o dia que aprendeu a amaldiçoar. O que é isto de viver sem o querer?

Cresceu no Redondo e nunca parou de crescer. Amaldiçoou a ironia do seu local de nascença. Morbidamente obeso nunca conheceu o sabor da fome. O que é isto de não saber o que é comer e encher as entranhas sem nunca se completar? Amaldiçoou a maldade do seu apelido.

Viveu sentado numa tábua de dois por quarto pregada por ele em oito bilhas de gás verdes na porta de uma leitaria de beira de estrada. Todos os dias a limpar o suor da testa com o pulso que não conhecia. Todos os ossos escondidos debaixo das planícies da sua carne.

Fernando Fino foi um sortudo, escolhido pelo distrito local. Seria operado numa operação nova onde lhe retirariam mais de metade de si numa operação nada complicada. Teria as miudezas sufocadas por uma rede e saberia finalmente o que seria caminhar.

Amaldiçoou enquanto pôde amaldiçoar o dia em que o fizeram.

Não resistiu.  Nem nunca se viu.

Morreu já só metade de si, provavelmente com a metade que não interessava.

A outra, feita mais dele do que a que jaz na terra, conserva-se pelos quintais, nas árvores e nas plantas.

Essas que amaldiçoam não ter voz para perguntarem como ele

O que é isto de se viver sem o querer?

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Morreu Março

Há dois dias atrás, morreu Março.
Abril avaliou-o a meio de Fevereiro e, na altura, elaborou um ensaio crítico acerca da sua pessoa.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:


"Março é um velhote megalómano.

Convencido que é primeiro,
que é romano e marinheiro.

É só um pobre diabo com a mania das grandezas
e com pressa de navegar.

Usa uma toga branca e por baixo está nu.

Despido de lucidez,
carregado de manhas,
ajeita a coroa de louros com pose de imperador.

Já no peito,
impera a dor.

E assim é Março,
na sua eterna incongruência,
que arrasa a paciência de quem o tenta entender."

grânulo mineral

costumo.me enternecer quando fantasio com submarinos amarelos,
improvavelmente a navegar nas profundidades de um afogamento nas nossas profundezas,
os submarinos amarelos, contrariamente a músicas que se lhes dedicam e os tornam famosos,
são pedaços deliquescentes de homens e mulheres alarves, vulgo alcoólatras,
bífidas tânagras com insuficiências renais derivadas de miasmas etílicas.
e pois é isto que explana o meu compadecer,
é por ser misantropo de sangue num mundo sanguinário que desprezo a sociedade,
acumulando.me junto aos detritos lânguidos depositados na mais profunda cavidade marítima.

sábado, 28 de março de 2009

O décimo oitavo andar

Célia Bastos morreu na sequência de um acto tresloucado de ciúmes do seu marido Pedro Brito, um biólogo de Vizela com quem se casara recentemente. Decorria o ano de 2003 e Célia encontrava-se em Londres. Tudo indica que era essa a cidade que servia de abrigo para os seus casos extra-conjugais, "ninho" de mil e uma noites nos braços de vários homens, sempre diferentes de mês para mês.

Três anos antes da sua morte, tinha-se suicidado o seu ex-marido, Ernesto Tinoco, num processo que teve tanto de penoso como de bizarro, dada a natureza invulgar do homem. Passado um ano deste acontecimento trágico, Célia casou-se então com Pedro Brito numa cerimónia curta e cinzenta, denunciando à partida um casamento por conveniência. Nesse dia, esteve presente no registo civil a pequena Rita Bastos Tinoco, filha do falecido Ernesto, e que em breve iria ficar também sem mãe nem padrasto.

Foi no décimo oitavo andar do Washington Mayfair Hotel que, numa manhã fria de Domingo, aconteceu a tragédia que chocou meia Londres. Uma porteira de Curzon Street acordou em sobressalto com um estrondo vindo da rua. Apressou-se a ir ver o que se passava, com medo de um ataque terrorista, e espantou-se ao ver dois corpos ensanguentados, de um homem e de uma mulher, esmagados no meio do asfalto por entre estilhaços de vidro e farpas de madeira. A polícia de Londres apressou-se a enviar oficiais para o local, entre eles o detective Wright: um veterano com demasiada vontade de se reformar e demasiado apreço por gin. No entanto, e apesar do seu fraco entusiasmo por exercer a actividade com profissionalismo, o detective encontrou um bilhete no quarto, por baixo do candeeiro de uma das mesas de cabeceira. Era um pedaço de papel pardo amarfanhado e escrito a lápis, que embora não estivesse assinado tudo levava a crer que tivesse sido redigido pelo próprio Pedro Brito. Rezava assim:

“Correr deixou de ser solução: é preciso aqui ficar, e assim justificar a natureza do meu acto.

Levei-te ao fundo de mim, para veres só por ti aquilo que eu nunca vi, e descobrires o que se esconde num ser tão vulgar assim: EU.

No dia do meu velório, aparecer de cara lavada é saber como a honra salvar. É tudo o que me resta depois de tudo o que fizeste, e acima do que não disseste, a traição que cometeste.

Ganhar, ganhar, ninguém ganha.
Empatámos os dois, tempo um no outro, as nossas vidas a cessar em segundos semelhantes, e deixarmos de respirar e de sermos seres pensantes, para largarmos enfim de ser.

Barricar o meu orgulho num décimo oitavo andar.
E ver-te assim dormir sem sonhares que eu aqui estou, os teus sonhos de outros temas não fui eu quem tos roubou, nem fui quem te abandonou.

Hoje, vejo em ti uma alma de aguarela, desbotada e mal tingida, tão fraca e amarelecida que não vejo cor em nós, não sinto amor em nós, não conheço nada em nós.

Se vivi tudo já, então não sei porque vivo.
Roubaste-me a história, o nome, o peso e o sorriso; tiraste-me tudo, mulher.
Roubaste-me a esperança e fizeste-o sem pensar.

E por isso aqui me tens para te dar mais um abraço, o derradeiro, para contigo assim voar. De um décimo oitavo andar.”

Diante da janela estilhaçada, o detective Wright voltou a embrulhar o pedaço de papel pardo escrito à mão, encontrado na mesa de cabeceira da penthouse. Lançou um último olhar para a azáfama de polícias e repórteres, lá em baixo. Deu mais uma passa no que restava do cigarro e exclamou para si próprio antes de sair: “Grandessíssimo Corno!”

terça-feira, 10 de março de 2009

Arrivederci, Don Serôdio

Don Serôdio nasceu em meados dos anos 30, algures na Brandoa.
O pai era cigano, a mãe era lisboeta, o avô coleccionava postais ilustrados.
Já ele gostava de ouvir falar o italiano.

Os Serôdios não eram abastados, viviam daquilo que a feira ia dando, e de um ou outro crimezeco cometido para ajustar as contas de alguém. Foi assim que, a pouco e pouco, o pequenote ganhou afeição pela nobre arte dos gangsters.

Ao tornar-se gente, tornou-se também o Don da Família criminosa, à boa maneira siciliana. Don Serôdio.
O homem que todos temiam, o "Demónio da Brandoa", o "Orangotango louco da linha de Sintra", o "Chicharro-estripador que mora ao pé da Amadora". Muitos nomes para um só homem sedento de sangue e dinheiro.

Sob a liderança do jovem, a Família Serôdio alcançou muitos mais membros, ansiosos por ganhar o respeito do seu ídolo. Cada um pior que o outro. Tão insurrectos, tão marginais, que nem deram pelo 25 de Abril. Para eles era igual, continuavam sem obedecer a ninguém senão ao seu bem-amado líder.

Após décadas no auge do crime organizado, Don Serôdio começou a perder faculdades e a tornar-se "mole". Tornou-se também uma presa fácil para a polícia, tendo sido detido precisamente no dia em que fazia cinco anos que os Serôdios não cometiam nenhum acto ilegal. Contra ele estava toda uma vida manchada por crimes de toda a espécie e feitio, tão graves e cruéis que parecia impossível ter sido um só homem a comandá-los. Mas, aos setenta anos, o Don preferia pregar partidas, rir-se às gargalhadas e ser incoerente, como um bom e velho idoso senil.

Don Serôdio morreu pouco tempo depois de ter ido "ver o sol aos quadradinhos", ninguém sabe muito bem como. Apareceu asfixiado na sua cama, com a almofada a tapar-lhe a cara. O caso foi arquivado como suicídio, apesar de todos saberem que o veredicto fora comprado por Ruizinho "Calzone" Figueiras, um homem que há muito ambicionava o título do velho Serôdio.

Deixamos a transcrição de uma das investigações "sob disfarce" efectuadas pela polícia no gabinete de Don Serôdio. Terá sido uma das mais arriscadas pois envolveu um agente "no terreno" há vários anos. Mas felizmente nessa altura o velho já tinha perdido o juízo...

O escritório é obscuro e tem um estilo clássico, semelhante ao de Don Vitto Corleone do filme “The Godfather” de Francis Ford Coppola. Sentado atrás de uma secretária está Don Serôdio: um indivíduo gordo, muito sisudo, com cabelo branco penteado para trás à mafioso. Usa fato e gravata, e esfrega as mãos, pensativo. Ao seu lado, em pé, e com os braços atrás das costas, encontra-se um outro homem mais novo, alto, magro, com o cabelo claro pela base do pescoço. Usa óculos e um grande laço que lhe dá um aspecto ridículo. Em frente da mesa está o agente Fonseca, sob o nome de Senhor Zé, uma personagem que representa há anos para ganhar a confiança da máfia e incriminar os seus piores membros.

(Don Serôdio esfrega as mãos vigorosamente, soa a música do filme “The Godfather” entoada por alguém com a boca fechada)
(Don Serôdio que continua a esfregar as mãos nitidamente incomodado, a cantilena prossegue)

(Don Serôdio)
- EPÁ, CALA-TE!! – grita de repente, para o homem do laço que se encontra o seu lado, denunciando o intérprete. Don Serôdio fica a olhar para o homem que se afasta cabisbaixo.

(Don Serôdio)
- Quer um homem colocar em prática trafulhices mafiosas e é sempre este chinfrim insuportável… squiiik squiiiik squiiik !(fazendo gestos com as mãos) Porque é que não vai à sua vida? Não tem cabeças de cavalo para aviar?!

(Homem do Laço, a olhar para o chão)
- …

(Don Serôdio, virando-se agora para o Senhor Zé)
- E fique você sabendo que a culpa de tudo isto é sua! Vem-me para aqui pedir favores e eu enervo-me logo… Fico com as mãos todas secas, pá! (retira uma embalagem azul de Nívea e, com dificuldade, esfrega um grande pedaço de creme nas mãos. Atrapalha-se a fechar a embalagem metalizada, com as mãos gordurosas e, berrando, atira com a embalagem para cima do Homem do Laço)

(Don Serôdio)
- AAARG!! Ainda aqui está?! Desapareça, já disse! (aos berros)

(Homem do Laço)
- Sim, Don Serôdio. (sai, limpando o crème Nívea do casaco com um lenço)

(Senhor Zé)
- Padrinho, eu detesto aborrecê-lo. Não teria vindo até si se não fosse um caso mesmo grave. (fala nervosamente)

(Don Serôdio)
- Ouça, eu já sei o que hei-de fazer com os patifes que lhe assaltaram a Tabacaria.

(Senhor Zé)

- Ah sim?!

(Don Serôdio)
- Muito simples.

(Senhor Zé)
- Obrigado, Padrinho! (beijando-lhe a mão, e cuspindo logo de seguida o crème Nívea) Eu sabia que podia contar com a sua “mão pesada”. Aquela gentalha não se ficará a rir!

(Don Serôdio)
- Esta mesma noite, o Luca Zarolho fará uma visitinha a esses facínoras.

(Senhor Zé)
- Eh eh eh eh. (entusiasmado)

(Don Serôdio)
- Quando fecharem os olhos num sono profundo… Luca atar-lhes-á os atacadores das botas! Ah ah ah! Quero vê-los aos saltinhos de manhã, aos trambolhões! (levanta-se e põe-se aos saltos, com os pés juntos) Ai o que me aconteceu?! Ai o que me aconteceu?! Ah ah ah! (acalmando-se) Meu caro amigo. Nunca mais tentarão nova brincadeira. Isso eu lhe garanto.

(Senhor Zé)
- Só isso? (desiludido)

(Don Serôdio)
- Só?! Acha pouco?! (espantado)

(Senhor Zé)
- Confesso que estava à espera de algo mais… forte.

(Don Serôdio)
- Mais forte ainda?! Só se eu pedir ao Luca para lhes enfiar bombinhas chinesas nos peúgos… para ajudar à festa. O que acha?

(Senhor Zé)
- Pois… isso é capaz de arreliar, é. Mas ainda assim, esperava algo mais bruto. Sei lá, uma sova, uma ameaça de morte, um tiro… Vocês são a Máfia, certo?

(Don Serôdio)
- Correcto, mas lá por sermos a Máfia não quer dizer que não nos possamos divertir um bocadinho. As rajadas de metralhadora, as bombas, os sequestros… tudo isso é fascinante, não me interprete mal. Mas de há uns anos para cá andamos a especializar-nos em partidas. “Quase todo o inconveniente, o dobro das gargalhadas” é o nosso slogan.

(Senhor Zé)
- Mas mesmo assim. Falamos de marginais que me escavacaram com o estabelecimento, me violaram duas filhas e um jardineiro e ainda comeram o resto dos cereais de chocolate, os meus preferidos, sabendo que só vou às compras no fim-de-semana e só aí posso comprar outra embalagem. São bandidos e são maus! E só uns atacadores atados uns aos outros?!

(Don Serôdio)
- Com nós de marinheiro… aquilo é coisa que nunca mais sai!

(Senhor Zé)
- Pois, mas assim não. Se é assim prefiro ir a outro lado. Ao Cobrador do Fraque, por exemplo. Ouvi dizer que por mais cem euros são meninos para atirar a cartola a alguém… e aquela abas de feltro ainda é coisa para aleijar.

(Don Serôdio)
- Então e se nós lhes colarmos um papel qualquer nas costas… tipo: “Sou um Palerma”. Já imaginou? Eles na rua todos lampeiros e as pessoas a apontarem e a rirem… Ah ah ah. Isso é que era um fartote. Era verdadeira humilhação. Pense nisso… (divertido)

(Senhor Zé)
- Não, peço desculpa. Vou a outro lado. (bate com a porta)

(Don Serôdio)
Ah vais a outro lado?! Então vê lá se um dia não ficas com o telemóvel em turco! Depois é ver-te a tentar mandar mensagens para Istanbul! Não tenhas cuidadinho não, meu menino! Grande palhaço! Onde é que está o meu crème Nívea?! (aos berros)

sexta-feira, 6 de março de 2009

César

há falta de melhor, comprei um camião em forma de ipsílon,
saí para a estrada, atropelei três pessoas e um idoso, também pessoa mas diferente das pessoas por ser uma espécie de extinção,
um extintor virou-se para mim, sorriu-me, oxigenou-me e salpicou-me com ou ou ou´s
e lá fui eu rente à berma da estrada,
amestrado por uma forma geométrica com motor, sem amor,
um larápio de vielas, sem velas que me alumiassem um caminho de terra com anjos e enfins,
mais menos, menos mais, uma vírgula a mais nunca é de menos,
até quando um taxi me atropela e morro,
morri!

domingo, 1 de março de 2009

A última dança de Bernardino Roupão

Bernardino Roupão era um homem pacato e sossegado, não necessariamente por esta ordem. Não gostava de fazer nada, nem sequer gostava da mulher: uma obesa septuagenária com quem tinha casado quando era novo, e quando ela não era tão velha. Bernardino Roupão passava os dias enfiado na vestimenta com o mesmo nome, a arrastar-se nas suas pantufas de coelho, a pensar em nada enquanto fingia que se preocupava por não ter ocupação. Gritava com a mulher de vez em quando e ouvia os berros dela em resposta. Nenhum dos dois gostava de fazer nenhum. Mas apesar de se detestarem e de discutirem com frequência, mantinham uma relação de tolerância preguiçosa, falavam como se apreciassem a companhia um do outro mas na realidade não havia nada que não estivessem dispostos a fazer para fugir para longe.

Isto se realmente se prestassem a fazer alguma coisa.

Viam TV o dia inteiro, e até ao dia da morte de Bernardino Roupão pode dizer-se que idolatravam o ícone dos media que é Manuel Luís Goucha. "Um homem todo jeitoso" segundo as palavras da senhora Roupão. Um dia, Bernardino decidiu bambolear-se, para provar que ainda tinha aquilo a que os velhos gostam de chamar de genica. Já não tinha. Morreu.

A senhora Roupão gritou de dor e riu-se a seguir, sabia que a vida sedentária que levava em breve lhe pregaria a mesma partida. Num futuro próximo, estaria ela estatelada no meio do tapete de Arraiolos, no lugar do marido. Mas isso não lhe fazia confusão, estava radiante por saber que tão cedo não voltaria a ouvir os queixumes irritantes de Bernardino, aquela voz aguda que lhe fazia cóceguinhas insistentes no ouvido. Ele estava morto e ela estava livre. Ou seria ao contrário?

Não há dúvida que Bernardino Roupão e a sua esposa eram um casal aborrecido que aborrecia quem os conhecia. Nunca saíam de casa e raramente retiravam os seus roupões. Segundo os relatos de uma marmota que habitava no apartamento em cima do deles, a conversa que levou Bernardino à morte terá sido alguma coisa como isto:

(senhora Roupão)
- Este Goucha é um moço todo jovem e divertido... e diz que já não é novo...
(Bernardino Roupão)
- Pois não é não...
(senhora Roupão)
- Diz que não... (pausa) Sempre com estas roupas coloridas e vistosas...
(Bernardino Roupão)
- À palhaço, não é?
(senhora Roupão)
- Pois é. É mesmo à palhaço... mas ficam-lhe bem.
(Bernardino Roupão)
- Pois... a ele ficam... mas eu acho que ainda apreciava mais quando ele fazia coisas lá com a outra... a do queixo grande...
(senhora Roupão)
- Isso é que eram tempos, sim senhor. Nessa altura tinha este malandro bigode.
(Bernardino Roupão)
- É verdade. Agora substituiu o bigode por uns óculos espampanantes. São gostos...
(senhora Roupão)
- Eu gosto é quando ele dança... o que eu me divirto a vê-lo bambolear-se...
(Bernardino Roupão)
- E eu...! Passo aqui as manhãs a ver isto, sempre à espera do bambolear... que bem se bamboleia ele...
(senhora Roupão)
- Se eu tivesse a idade dele também me bamboleava na televisão.
(Bernardino Roupão)
- Também eu. E até era capaz de me bambolear bem mais vezes que o Goucha.
(senhora Roupão)
- Acredito, homem. Antigamente muito te bamboleavas tu. Não era era na televisão...
(Bernardino Roupão)
- Pois não, não era. Mas era um bambolear digno... assim como o dele (apontando para a televisão).
(senhora Roupão)
- Eu tenho para mim que ainda tenho forças para me bambolear hoje em dia, vê lá tu...
(Bernardino Roupão)
- Ó mulher, não te ponhas com ideias. Ele bamboleia-se tanto porque é mais novo que nós. Ainda vais fracturar alguma anca ou assim...
(senhora Roupão)
- Mas eu gostava de ver como ainda me bamboleio... A ver se consigo fazer como ele...
(Bernardino Roupão)
- Bamboleias-te depois de ires ao doutor, então. Para que seja um bambolear seguro.
(senhora Roupão)
- Está bem homem, se calhar é melhor... adio o bamboleio para depois.
(Bernardino Roupão)
- Este Goucha é uma inspiração para todos nós.

Passados alguns minutos, com o intuito de se superiorizar à esposa e de mostrar a sua boa forma, Bernardino Roupão ter-se-á levantado do sofá, dando início a uma enérgica dança.

A sua última.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Vitória Sanfim

Nascida por volta dos mil novecentos e cetentas e noves, filha de mãe muda e de pai falecido enquanto ainda estava no ventre materno, viveu num vale transmontano sem nome ou igreja ou pessoa a  vida toda.

Um dia morreu. A mãe carregou-a até à cidade numa burra.

E aí, finalmente alguém pôde contar a sua história.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

César

Não me recordo do dia em que nasci
e agora, prestes a morrer,
estou enclausurado num tique-taque biológico que não perdoa, magoa,
os minutos passam e cada vez mais próximas estão as ovelhas da família: avó; avô; primo, estou de volta, venham-me receber à entrada para não ficar preso no torniquete!

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Número oito

O número oito foi a primeira materialização bem sucedida de Salazar Coentro. Após vinte anos de extensas pesquisas, Salazar Coentro, quarenta anos, filho de Cristino Coentro e Cristina Coentro, conseguiu finalmente dar à luz o número oito. Foi no dia doze do mês sete do ano de dois mil, depois de Cristo. Apresentado à nação com um discurso que passou em directo em todos os meios de comunicação social que transmitem directos, o número oito foi o resultado inesperado para um problema mais que esperado, depois de todos os limites decorrentes do número sete, admitido à escala numérica internacional um quinto de século antes. Por conseguinte, o problema de que Salazar Coentro partiu colocava-se em encontrar a forma do número posterior ao sete, vulgo manifestação física, dado que o conteúdo já se encontrava definido há muito. Aliás, considerando-se a existência do infinito, deve-se ter em consideração que depois do agora materializado oito, faltam todos os seguintes números...

Apaixonado por estatística, numerologia e caricas, Salazar Coentro desde cedo se dedicou à materialização de números, tendo já no currículo um esboço para o número seis, aquando dos rabiscos e demais devaneios que produzira na escola primária. Considerado um génio, Salazar Coentro enquanto criança demonstrou um desenvolvimento precoce, dotado de pensamento lateral e de uma alma que à noite se revelava sonâmbula. Aliás, variadas foram as vezes que Salazar Coentro acordava por a sua alma estar a fazer contas de cabeça. Agora que a Fundação para a Escala Numérica Mundial aceitava o seu número oito, Salazar Coentro não cessava em entrevistas e reportagens, não sendo raros os jornalistas que o acompanhavam diariamente, desde que saía até que regressava a casa. Alguns chegaram até a montar tenda bem à frente do seu lote. Se de início todo este mediatismo foi ao encontro de um certo orgulho e brio, com o passar do tempo estes mesmos sentimentos deram lugar à obstinação e ao incómodo. Com naturalidade, Salazar Coentro passou a enfrentar jornalistas, correndo-os à pedrada e esmigalhando-os com insultos, fechando-se em copas na divulgação e explicação do seu raciocínio, do seu novo trabalho, do que comia, de como dormia, das previsões para a forma do número nove. Subitamente, o próprio trabalho passou a estar afectado pois Salazar Coentro passara a ter dificuldades de concentração. Irritado, passou a dirigir um ódio contra as pessoas em geral e contra o número oito em particular. Afinal de contas, tinha sido este a causa de todo o mal, cogitava. Tal não foi de estranhar que no dia vinte do mês oito do ano de dois mil, depois de Cristo, Salazar Coentro tenha tomado uma decisão: queimar todos os papéis em que desenvolvera o raciocínio para a forma do número oito. E assim foi, a forma do número oito, que durante vinte anos ocupara o pensamento diário de Salazar Coentro, acabara de ser consumida, engolida e devorada por um fogo que, de tão quente que estava, o transformou em cinza em apenas oito minutos. Que coincidência esta... Uma cópia do raciocínio que levou à forma do número oito encontra-se actualmente na sede da Fundação para a Escala Numérica Mundial, porém os técnicos precisam ainda de compreender todo o raciocínio para chegar ao resultado final, cujo exemplar único fora consumido pelo fogo. O número oito transformara-se num hiato de morte, num lusco-fusco de vida. Salazar Coentro acabou por ser preso, acusado de crimes contra a humanidade e com pena de prisão perpétua, como desfecho lógico do impedimento de beneficiar da legítima defesa de advogado durante o julgamento, depois de se recusar a recuperar a forma para o número oito. Habitando a cela 5H do estabelecimento prisional de Lisboa, Salazar Coentro é confrontado diariamente por uma série de pressões para reproduzir a forma do número oito. Dada a sua constante recusa, à sua cela foi retirada a retrete e o colchão, tendo Salazar Coentro de dormir em contacto directo com o frio da pedra. Dotado de uma pequena janela, com duas grades de quatro centímetros de diâmetro e separadas por três centímetros, a cela tem como única vista o aterro da prisão. Resta acrescentar que os dias de Salazar Coentro são passados a ler, escrever e fazer cócegas à sua alma. Por vezes descobrem-se rabiscos que aparentam um novo número, porém, até hoje, Salazar Coentro sempre se recusou na concretização do mesmo. Com a morte do número oito, morreu também um pouco da alma de Salazar Coentro, agora entregue a uma distorção da realidade sem igual.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Fernando Lagarto descobre que vai morrer

A Fernando Tita Ferreira, chamavam-lhe Fernando Lagarto na escola. Isso porque tinha a derme da mão esquerda a escamar, como se da pele de um réptil se tratasse. A maleita, conhecida por psoríase, alastrou-se do joelho direito para o interior da coxa oposta; daí seguiu para os três primeiros dedos do pé que estava mais à mão, fintou toda a zona da anca e acabou por alojar-se na mão esquerda. Nunca nenhum médico conseguiu explicar o porquê deste súbito problema, só sabem dizer que desapareceu magicamente quando o jovem completou oito anos.

Foi mais ou menos nessa altura que Fernando Tita Ferreira descobriu a obra de Pessoa, ao perceber que morava numa cidade chamada Lisboa e que afinal esta até estava bastante longe de Rejkiavik. Foi uma verdadeira surpresa. Durante algum tempo, Fernando fazia questão de ir para as aulas com um bigode semelhante ao do poeta, pintado com marcador. Os bofetões resultantes de tamanha extravagância fizeram voltar a psoríase, mas desta feita a doença apenas atingiu as amígdalas. Todos ficaram aliviados por não estarem à vista.

Fernando Tita Ferreira cresceu a amar a alma lisboeta, a forma como inspirava os artistas, o quão diferente e incrivelmente igual conseguia ser da Hungria e de alguns países árabes. "Só uma cidade assim podia ter gerado o génio pessoano", pensou um dia. O mesmo dia em que, ao descer a Rua Garrett, descobriu que não lhe restavam muitos anos de vida. Não, a psoríase não era fatal. Apenas sabia que os seus dias estavam a chegar ao fim, a empurrá-lo para o chão com cada vez mais força. A sua própria vida queria dar de si. Parecia-lhe lógico que assim fosse.

Nessa mesma noite, Fernando Tita Ferreira chegou a casa e rejeitou o caldo de míscaros que a mãe tinha cozinhado na semana anterior. Sentou-se à secretária do seu quarto, com vista para a luz amarelada da rua, suspirou três vezes e terá escrito o seguinte texto:


Sulcos profundos
por Fernando Tita Ferreira, 1979



As pegadas na calçada pregaram sulcos profundos.


Buracos que persistem
como poços em silêncio.

Pingam,

pingam,

pingam,

pingam sem paz
mas duram para sempre.

Para sempre.


Cheio do gotejar,
não te deixa deixar o Chiado,
enfim a morrer.

Mas nunca morres…


Estás comigo, do meu lado.
Vestes a roupa que eu visto.
Fazes tudo o que eu faço.

Enquanto os sulcos da calçada,
(de onde nunca brotam flores)
na paisagem branca ou branca suja
imagino a tua imagem
como alguém que não descansa
e não pára de agitar a mão.


Deixaste poços no Chiado
que gotejam sem parar.

Eusébio Pintarolista

Morreu Eusébio Pintarolista. Homem bom, homem mau, bipolar, com uma mão atrofiada devido a um parto negligente.

Nascido nas Aranhas, Penamacor, em 1952, jogou à bola no Duas Quintas até agredir um árbitro de quinta categoria que o acusou de ter metido mão  na bola em cima da linha.

Morreu uma promessa do futebol de rua e de muito mais. Empreendedor, criou a primeira empresa de dobragens para brasileiro em Mora, Alentejo, terra dos melhores cachorros em papo-seco de Portugal e Galiza.

Eusébio trazia grande amor no peito pela dobragem. Apesar de falhar a concretização de projectos importantes como As Aventuras de Nils Holgerssons ou Donald no País da Matemágica, nunca se deixou dobrar às evidências: ele não levar o menor jeito para isso.

Na sua terra natal, Paz, perto de Mafra, conta-se que deixou todo o dinheiro para o autocarro da Escola Primária. Viajante e exímio condutor de Toyotas Hiace ao longo da tapada, levava os alunos de porta em porta, descarregando coxos com o seu colo. Empurrando os mais tímidos com uma palmada inocente nos glúteos. Beijando delicadamente as meninas no cocuruto.

Ele, que os levava sempre em cantoria, ao som da Rádio Ribamar , aproveitou para deixar estas palavras inspiradas à mulher e às pessoas da Dipol – loja de tudo e mais alguma coisa, no centro da Amadora, antes de se render à aurícula assassina: “Vieram levar-me para onde todas as coisas vão, todas as coisas vão, como dizia Sufjan Stevens na rádio que agora ouço à noite antes de meter o creme Nivea e a ceroula.”

 

Em honra de Eusébio Pintarolista, deixamos a última frase do ultimo trabalho de dobragem que fez. Um documentário habilmente traduzido como “A gente fala AIDS porque é como os inglês fala”.

“AIDS quem diga que tudo isto não é sacanagem. A vida é sacanagem”. 

Ernesto Tinoco

O Santíssima Trindade tem o prazer de reproduzir uma carta de suicídio enviada por Rita Bastos Tinoco, filha do "triste-coitado-que-se-suicidou".


“Querida Célia,

Despeço-me deste mundo depois de jantar o maravilhoso quiche de legumes que cozinhaste antes de sair. Estava tão bom, conseguiste evidenciar o sabor da cebola e do alhinho como eu tanto gosto, obrigado! Afianço-te, custar-me-ia muito mais a partir se o fizesse com o sabor de uma batata frita ou até de uma ervilha. Não é que não goste de ervilhas, mas o sabor da ervilha perde-se com facilidade, parece daquelas pastilhas elásticas baratas e que custam mascar. Como costuma dizer o teu pai, a quem desde já envio um forte abraço e peço desculpa por não me ter despedido directamente dele, “ervilha é gravilha, perde-se no vento e não brilha!”... Relativamente à batata frita, não tenho muito a apontar, sabe sempre bem, mas não queria partir com excesso de gordura. Aliás, a partir do momento em que decidi suicidar-me com os tiros de duas armas diferentes (por uma questão de logística corporal), uma apontada ao lobo frontal do cérebro e outra apontada aos intestinos, tentei garantir que o meu corpo estava livre de qualquer tipo de toxinas. De facto, não sei se reparaste, mas ultimamente bebia bastante água, algum chá e nenhuma bebida alcoólica ou com gás. Para além disso, controlei as minhas fezes e restante matéria fecal, organizando e disciplinando o meu corpo para urinar e defecar todos os dias à mesma hora, a mesma quantidade. Isto explica o cronómetro e a balança que ultimamente levava para a casa-de-banho. O propósito foi lógico: quando a bala me atingisse e o meu corpo se espalhasse, evitar que todo o tipo destas substâncias se propagassem pela sala, a fim de não destruir os sofás e suporte de pés, a mesinha do candeeiro e revistas, as estantes com os nossos, agora teus, livros, a televisão com ecrã plasma, o leitor de dvds, a aparelhagem, as colunas da aparelhagem e do dvd, a carpete e o mini-bar. Não estarei cá para ver o resultado, porém espero sinceramente não estragar nada... desde já te peço para guardares a colecção de migalhas de bolacha que fui juntando na terceira gaveta da minha escrivaninha. Bem, resta-me agradecer-te a paciência e pedir-te desculpa por não ter lavado a loiça da minha última refeição, beijinho eterno, Ernesto Tinoco

p.s: O meu último espirro vai a leilão!!!”


Ernesto Tinoco nasceu em Oeiras a 29 de Fevereiro de 1960. A partir dos nove anos apercebeu-se que “era diferente de todos”, conforme recorda um amigo de infância a quem Ernesto ficou a dever 25 escudos, porque só celebrava o aniversário de quatro em quatro anos. Esta situação criou-lhe uma dissonância que nenhum calendário ou explicação matemática conseguiram dissipar. Deprimido desde então, iniciou um périplo pelas estradas regionais que separavam Oeiras de Lisboa. As suas caminhadas afastaram-no da família, dos amigos, da escola e da plena vivência da juventude, aproximando-o, no entanto, com sucesso de Lisboa. Aos quinze anos cometeu a primeira tentativa de suicídio, lançando-se da janela de casa dos tios, em Carcavelos. Entretanto, com vinte e um anos foi “encarcerado involuntariamente”, segundo propalava, na ala psiquiátrica do Hospital São Francisco Xavier, depois de repetir ao longo do mesmo dia por entre sussurros, sorrisos e urros a frase “ajudem-me a afundar o porta-aviões que tenho no pulmão direito”. Porém, o percurso de Ernesto não foi marcado só por baixos. O seu momento alto ocorreu no dia 29 de Fevereiro de 1988 quando, com vinte e oito anos, “ou seriam sete?” questionou na altura, casou com Célia Bastos. Não registando quaisquer episódios ou sinais de demência, para além de nova tentativa frustrada de suicídio através da inalação de espinhas de carapau, Ernesto passou os anos seguintes na sua vivenda na Rua da Estação, em Oeiras. Finalmente, a 1 de Março de 2000, acabou por se suicidar com dois tiros ao som de Stabat Mater de Verdi, álbum cujo cd estava riscado. No seu testamento fez questão de oferecer todas as suas meias “aos pretinhos da Guiné”, escreveu. Célia recorda este como um dos momentos mais felizes de Ernesto, “foi há cerca de dois meses, ele andava visivelmente entusiasmado com a história da Guiné e queria dar tudo àqueles pretos golpistas!!”. Ernesto nunca chegou a conhecer a sua filha, Rita Bastos Tinoco, nascida a 1 de Abril de 2000.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

José Macau

José Macau nasceu no Porto e morreu em Lisboa. Na sua certidão de nascimento encontra-se indicado que nasceu na Rua Cidade de Lisboa, considerada por lapso na freguesia de Santo Ildefonso, quando, na realidade, apoiado na toponímia e nos cálculos comparados das distâncias da anteriormente referida rua com o rio Douro, esta se situa na freguesia de Paranhos. Correcta está a informação relativa ao momento em que nasceu: às duas horas e treze minutos da manhã do dia 13 de Fevereiro de 1926. Incompleta está a certidão quando ignora deixar espaço para a data da sua morte: 2 de Novembro de 2001, dia de finados, segundo a crença católica.


Zé Macau, como era tratado pelos amigos, foi um homem pouco dado ao catolicismo apesar de variadas vezes ter pedido a alguém superior entrar no século XXI, “o século do futuro!”, como não se cansava de proclamar, de olhos, boca e braços bem abertos. Não tendo tido oportunidade de o viver muito em vida, viveu-o o suficiente em imaginação, nomeadamente através de conjecturas, previsões e demais suposições abstracto-filologo-transpirantes das vidas daqueles que todos os dias encontravam a morte. E não precisava Zé Macau conhecer a alma do perecido para sobre ele enredar.


O método de Zé Macau era simples e infalível: concentrando-se nas páginas de obituário de um jornal de grande tiragem, tecia arquejos e formas de locomoção, tirava notas sobre familiares e amigos, adiantava morada e última refeição do recém-morto. Era um fartote. Um sem número de amestradas probabilidades convertidas em certezas, apoiadas em explicações e provas irrefutáveis. E assim foi até ao dia 2 de Novembro de 2001, quando caído em febre na cama, depois de suores, delírios e espasmos, ele próprio morreu na única casa para onde comprou um candeeiro. Quem assistiu ao termo de existência de Zé Macau, assevera que a sua respiração terminou em dó menor.

Um sósia de Pessoa

Fernando Tita Ferreira nasceu em Lisboa em 1959 e veio a falecer na mesma cidade em Agosto de 1986. Morreu a meio de uma tarde amena, "na mais profunda paz". Não estava doente, não sofria as consequências de nenhuma tragédia, não tinha preocupações de maior. Quem o rodeava nesse dia diz que fechou os olhos e morreu, naturalmente, como se fosse o mais lógico de acontecer aos 27 anos.

Teve uma vida atribulada, de profissão em profissão, tinha uma obsessão pela obra de Fernando Pessoa e pela cidade de Lisboa. Tentou vestir a pele do poeta, era o que se podia chamar um sósia, mas nunca passou disso. A sua obra é curta e nunca foi revelada a ninguém. Apenas uma série de poemas amarfanhados numa pasta preta que deixou de herança aos pais. Fica um desses textos:


Memórias da Cidade Branca
por Fernando Tita Ferreira, 1982



Há algo nesta cidade que me faz senti-la
e querer,
(no mais profundo da minha alma)
desejar fugindo da matéria que há em mim,
com sede e fome e desespero ao mesmo tempo,

ser Pessoa ressuscitado.


Ressuscito
(se ainda ninguém o fez ou sabe).

Ressuscita-se assim a cidade solarenga,
subindo o sol nas colinas,
a saudade da cidade branca…

Nasci no dia em que Pessoa morreu.
Não no mesmo ano. Nem no mesmo universo.
Mas nasci,
estou aqui,
e ele já não está.


Há algo nesta cidade que me faz senti-la.
Algo que é seu,
sua a essência branca e luminosa que me pulsa nas veias…

e nos dedos de Paredes também pulsava…

Tamanha glória faz-me chorar.
Tamanho orgulho faz com que queira morrer com a face presa à calçada!
Deixando passar por cima do meu corpo outra gente da Lisboa que acabou,
mas que era ela que eu amava.

Nasci na Lisboa da altura errada.
Não sou desta data.
Sou de Lisboa.


Suicido-me sem sofrer
só para sentir a cidade da saudade de sempre,
a cidade cinzenta-alva do sol da salvação.

E enquanto não o faço sonho com Pessoa,
que tomo café com o poeta,
numa esplanada…

os olhos marejados de lágrimas e o coração fora de mim
em cima da mesa…


Esta era a minha Lisboa
e só esta era que ainda ninguém de mim roubou.