quinta-feira, 9 de julho de 2009

O Diálogo inédito de Sócrates


Após a sua detenção, já com idade bastante avançada, o mafioso Don Serôdio sofreu um período deveras traumático, derivado de uma violenta queda que sofreu na sua cela. Por ter batido com a cabeça em cheio no beliche, passou uma semana entre a vida e a morte, sofrendo inúmeros delírios. Quando recuperou, contou uma série de histórias incongruentes, directamente relacionadas com o seu estado crescente de senilidade e com a própria lesão craniana. Não viria a viver muito mais tempo, morreu cinco semanas depois em circunstâncias pouco claras, vítima de asfixia. 

No entanto, antes de perecer, relatou uma das suas experiências pós-morte: um diálogo que terá presenciado in loco, entre José Sócrates e Deus, durante a festa de aniversário deste último. Segue a transcrição exacta que o psicanalista do presídio efectuou dos relatos do decadente Don Serôdio.


"Seguido por São Pedro, Jesus Cristo está numa autêntica pilha de nervos em plena festa de aniversário do Pai. Dá ordens aos empregados, prova os canapés, ajeita as flores, perde-se em mesuras e rococós perante tão ilustres convidados. São Pedro finge preocupar-se com as mesmas questões, mas não faz mais do que fingir. Está preocupado com as chuvas de Abril. Este ano quer esmerar-se para provar que ainda tem a estaleca de outros tempos. Enquanto manda servir o queijo de cabra a Madre Teresa de Calcutá e Mahatma Gandhi, que privam em amena cavaqueira, Jesus caminha em direcção ao Pai que dormita no seu trono de nuvem. Todo o céu está engalanado perante tão gloriosa ocasião: o aniversário do Todo Poderoso.

- Pai, Pai, acorde. – ordena J.C., embaraçado. – Não tem vergonha de estar aqui a dormir?

- O que é que queres dizer com isso?! Sendo eu omnipresente pode-se dizer que quando 
adormeço, adormeço sempre em todo o lado. – Deus penteia as longas barbas brancas com a mão. – Hoje não estou com “saco” para fazer sala. Aviso já.

- Eu não quero saber disso para nada. O Pai quis convidados à altura e eles aqui estão. Não seja mal educado. – Cristo faz finca-pé perante a teimosia do velho.

- Já a formiga tem catarro! Está bonito está… Não fosse eu Deus e já estava enfiado num lar. Com pouco mais de dois mil anos e já me responde, o fedelho.

- Haja paciência. – suspira Cristo, sorrindo aos convidados. – Ao menos tenha uma conversa com um deles, Pai. Parece mal estar para aqui a ressonar e a babar-se na nuvem. Hão-de dizer que está senil. E com razão…

- Senil, eu?! Está bonito está… Não fosse eu Deus e já estava enfiado num lar. Com pouco mais de dois mil anos…

- Já sei, já sei! Cale-se, porra. – Cristo quase perde a paciência. – Vá, tenha uma conversa com alguém, por favor. Socialize.

- Uma conversa? – Deus puxa pela cabeça. – Olha, quem era danado para as conversas era aquele filósofo ateniense, o Sócrates. Era um grande conversador, não haja dúvida. Vai lá chamá-lo.

- Mas o Pai tem a certeza que o Sócrates que convidou é o tal grego? – Cristo analisa o primeiro ministro português de longe. – É que estou aqui a topá-lo… Fatinho escuro, ar de pintas, conversa fiada… Não será um aldrabão qualquer?

- Mas qual aldrabão?! Então eu não sei quem é que convido?! Vai lá chamá-lo, já disse! - Deus levanta um pouco mais a sua voz de trovão, o que provoca um ligeiro “sururu” entre as visitas.

Seguido por São Pedro, Jesus Cristo dirige-se então a José Sócrates e aponta para o trono de nuvem com uma expressão desolada. Sócrates fica radiante quando se apercebe da importância do momento e aproxima-se de Deus com um grande sorriso na cara.

- Eu só quero dizer, não só a Deus como a todos os ilustres convidados, que é para mim uma verdadeira honra, e um privilégio também, estar aqui entre os presentes. - Sócrates faz uma vénia exageradamente demorada.

- Está bom, está bom. - sussura o Todo Poderoso, incomodado. - Vá, erga-se e venha aqui sentar-se ao pé de mim para dois dedos de conversa.

- Ah, e não quero deixar de referir, não só a Deus como a todas as figuras históricas aqui no Céu, que não me importo nada que tenham feito cair um piano em cima da minha cabeça durante o meu jogging matinal. Tudo para poder estar aqui convosco.

- Como assim? - pergunta Deus, a coçar a nuca.

- Ora, como é sabido, não só por vocês como por todos os desempregados portugueses, eu estava vivo e bem vivo. - Sócrates mantém o sorriso amarelo.

- Vivo?! Eu já ando a fazer confusão com as datas. É da idade. – o Criador faz sinal a um dos anjos para que lhe sirva um copo de espumante. – Então como vão essas filosofias, ó Sócrates?

- Vão bem, muito obrigado. Tive sempre vinte à cadeira na faculdade. – Sócrates beberica a bebida com ar guloso. – Nos bons velhos tempos da Independente, sabe?

- Pois, em Atenas sempre foi tudo muito independente lá com a democracia e tal… só acho que eram demasiado imaginativos com os deuses. Havia deuses para tudo. Não se contentavam só com um?

- Note que, em Atenas como em Lisboa, respeitamos Deus e a democracia. – Sócrates baixa um pouco um tom de voz. – Se bem que em Portugal até tendemos um bocadinho mais para os seus lados. Gosto de manter a democracia um tudo nada menos omnipresente, se é que me entende.

- Concordo contigo, ó Sócrates. Aqui no Céu também há uma hierarquia bem definida como tu sabes. Tudo muito bonito, sim senhor… Asinhas e auréolas para todos, não há dúvida… Mas quem manda é cá o “je”. – sussurra Deus, fazendo um brinde com José.

- Ora, nem mais!

- Agora diz-me cá. Portugal? Então a Grécia não te chegava? – pergunta o Todo Poderoso, enquanto limpa as barbas depois do gole.

- Chegou-me bem na final do Euro. A mim e aos portugueses, coitados. Andavam todos contentes com as bandeirinhas nas janelas… Nem reparavam naquilo que eu andava a fazer. Ainda aproveitei para efectuar muitas trafulhices na altura que ninguém dava por nada. – Sócrates esboça um sorriso malicioso.

- Percebo o que queres dizer. Eu também gosto de efectuar trafulhices de tempos a tempos. E para isso não há melhor sítio que Portugal, não é? – Deus solta uma gargalhada ruidosa.

- Pois é. Olhe como o caso Freeport! – concorda o primeiro ministro.

- Esse não conheço. Mas também é natural, hoje em dia vocês são cada vez mais e eu não dou conta de tudo.

- No entanto, deixe-me dizer-lhe, com toda a certeza aliás, que continua a ostentar admirável forma física. – Sócrates apalpa a perna direita de Deus. – Também costuma fazer jogging?

- Mau! Guarde uma distância de segurança, se faz favor. Vocês da Grécia antiga são muito dados às mariquices e estas barbas não são a fingir! – grita o Criador com cara de poucos amigos.

- Grécia antiga? Tem piada. – Sócrates massaja o queixo, pensativo. – Já que gosta assim tanto de História, e já agora também tive vinte nas cadeiras da faculdade, ouviu falar no Magalhães?

- Não ouvi falar em nada. Estou sempre muito ocupado. – responde Deus, aborrecido.

- Ah, então precisa imediatamente de mandar vir uns quantos de Portugal para implementar aqui no Céu. Faz maravilhas com a educação dos mais novos.

- Óptimo, mande-me entregar então aqui um que Jesus não faz mais nada senão curar leprosos e lavar os pés aos apóstolos. Parece obsessão, pá. Assim sempre se distrai com alguma coisa. – Deus aperta a mão de Sócrates, como que a despaxá-lo.

- Assim será, de acordo com a Sua vontade. – José aproveita o cumprimento para entregar a Deus um crachá do PS, um queijinho da Covilhã e um panfleto intitulado “Como deixar de fumar em aviões fretados pelo Governo Português”.

- Vá, volte lá à vida e à epistemologia que já vi que de ética e virtude não tem muito. – declara o Todo Poderoso antes de fazer Sócrates desaparecer numa explosão de luz.

Os restantes convidados aplaudem o espectáculo de pirotecnia. Uns por isso e outros porque não queriam voltar a aturar a conversa do antigo aluno prodígio da Independente. A cerimónia prossegue. Deus boceja e volta a adormecer profundamente enfastiado."

Sem comentários:

Enviar um comentário