terça-feira, 10 de março de 2009

Arrivederci, Don Serôdio

Don Serôdio nasceu em meados dos anos 30, algures na Brandoa.
O pai era cigano, a mãe era lisboeta, o avô coleccionava postais ilustrados.
Já ele gostava de ouvir falar o italiano.

Os Serôdios não eram abastados, viviam daquilo que a feira ia dando, e de um ou outro crimezeco cometido para ajustar as contas de alguém. Foi assim que, a pouco e pouco, o pequenote ganhou afeição pela nobre arte dos gangsters.

Ao tornar-se gente, tornou-se também o Don da Família criminosa, à boa maneira siciliana. Don Serôdio.
O homem que todos temiam, o "Demónio da Brandoa", o "Orangotango louco da linha de Sintra", o "Chicharro-estripador que mora ao pé da Amadora". Muitos nomes para um só homem sedento de sangue e dinheiro.

Sob a liderança do jovem, a Família Serôdio alcançou muitos mais membros, ansiosos por ganhar o respeito do seu ídolo. Cada um pior que o outro. Tão insurrectos, tão marginais, que nem deram pelo 25 de Abril. Para eles era igual, continuavam sem obedecer a ninguém senão ao seu bem-amado líder.

Após décadas no auge do crime organizado, Don Serôdio começou a perder faculdades e a tornar-se "mole". Tornou-se também uma presa fácil para a polícia, tendo sido detido precisamente no dia em que fazia cinco anos que os Serôdios não cometiam nenhum acto ilegal. Contra ele estava toda uma vida manchada por crimes de toda a espécie e feitio, tão graves e cruéis que parecia impossível ter sido um só homem a comandá-los. Mas, aos setenta anos, o Don preferia pregar partidas, rir-se às gargalhadas e ser incoerente, como um bom e velho idoso senil.

Don Serôdio morreu pouco tempo depois de ter ido "ver o sol aos quadradinhos", ninguém sabe muito bem como. Apareceu asfixiado na sua cama, com a almofada a tapar-lhe a cara. O caso foi arquivado como suicídio, apesar de todos saberem que o veredicto fora comprado por Ruizinho "Calzone" Figueiras, um homem que há muito ambicionava o título do velho Serôdio.

Deixamos a transcrição de uma das investigações "sob disfarce" efectuadas pela polícia no gabinete de Don Serôdio. Terá sido uma das mais arriscadas pois envolveu um agente "no terreno" há vários anos. Mas felizmente nessa altura o velho já tinha perdido o juízo...

O escritório é obscuro e tem um estilo clássico, semelhante ao de Don Vitto Corleone do filme “The Godfather” de Francis Ford Coppola. Sentado atrás de uma secretária está Don Serôdio: um indivíduo gordo, muito sisudo, com cabelo branco penteado para trás à mafioso. Usa fato e gravata, e esfrega as mãos, pensativo. Ao seu lado, em pé, e com os braços atrás das costas, encontra-se um outro homem mais novo, alto, magro, com o cabelo claro pela base do pescoço. Usa óculos e um grande laço que lhe dá um aspecto ridículo. Em frente da mesa está o agente Fonseca, sob o nome de Senhor Zé, uma personagem que representa há anos para ganhar a confiança da máfia e incriminar os seus piores membros.

(Don Serôdio esfrega as mãos vigorosamente, soa a música do filme “The Godfather” entoada por alguém com a boca fechada)
(Don Serôdio que continua a esfregar as mãos nitidamente incomodado, a cantilena prossegue)

(Don Serôdio)
- EPÁ, CALA-TE!! – grita de repente, para o homem do laço que se encontra o seu lado, denunciando o intérprete. Don Serôdio fica a olhar para o homem que se afasta cabisbaixo.

(Don Serôdio)
- Quer um homem colocar em prática trafulhices mafiosas e é sempre este chinfrim insuportável… squiiik squiiiik squiiik !(fazendo gestos com as mãos) Porque é que não vai à sua vida? Não tem cabeças de cavalo para aviar?!

(Homem do Laço, a olhar para o chão)
- …

(Don Serôdio, virando-se agora para o Senhor Zé)
- E fique você sabendo que a culpa de tudo isto é sua! Vem-me para aqui pedir favores e eu enervo-me logo… Fico com as mãos todas secas, pá! (retira uma embalagem azul de Nívea e, com dificuldade, esfrega um grande pedaço de creme nas mãos. Atrapalha-se a fechar a embalagem metalizada, com as mãos gordurosas e, berrando, atira com a embalagem para cima do Homem do Laço)

(Don Serôdio)
- AAARG!! Ainda aqui está?! Desapareça, já disse! (aos berros)

(Homem do Laço)
- Sim, Don Serôdio. (sai, limpando o crème Nívea do casaco com um lenço)

(Senhor Zé)
- Padrinho, eu detesto aborrecê-lo. Não teria vindo até si se não fosse um caso mesmo grave. (fala nervosamente)

(Don Serôdio)
- Ouça, eu já sei o que hei-de fazer com os patifes que lhe assaltaram a Tabacaria.

(Senhor Zé)

- Ah sim?!

(Don Serôdio)
- Muito simples.

(Senhor Zé)
- Obrigado, Padrinho! (beijando-lhe a mão, e cuspindo logo de seguida o crème Nívea) Eu sabia que podia contar com a sua “mão pesada”. Aquela gentalha não se ficará a rir!

(Don Serôdio)
- Esta mesma noite, o Luca Zarolho fará uma visitinha a esses facínoras.

(Senhor Zé)
- Eh eh eh eh. (entusiasmado)

(Don Serôdio)
- Quando fecharem os olhos num sono profundo… Luca atar-lhes-á os atacadores das botas! Ah ah ah! Quero vê-los aos saltinhos de manhã, aos trambolhões! (levanta-se e põe-se aos saltos, com os pés juntos) Ai o que me aconteceu?! Ai o que me aconteceu?! Ah ah ah! (acalmando-se) Meu caro amigo. Nunca mais tentarão nova brincadeira. Isso eu lhe garanto.

(Senhor Zé)
- Só isso? (desiludido)

(Don Serôdio)
- Só?! Acha pouco?! (espantado)

(Senhor Zé)
- Confesso que estava à espera de algo mais… forte.

(Don Serôdio)
- Mais forte ainda?! Só se eu pedir ao Luca para lhes enfiar bombinhas chinesas nos peúgos… para ajudar à festa. O que acha?

(Senhor Zé)
- Pois… isso é capaz de arreliar, é. Mas ainda assim, esperava algo mais bruto. Sei lá, uma sova, uma ameaça de morte, um tiro… Vocês são a Máfia, certo?

(Don Serôdio)
- Correcto, mas lá por sermos a Máfia não quer dizer que não nos possamos divertir um bocadinho. As rajadas de metralhadora, as bombas, os sequestros… tudo isso é fascinante, não me interprete mal. Mas de há uns anos para cá andamos a especializar-nos em partidas. “Quase todo o inconveniente, o dobro das gargalhadas” é o nosso slogan.

(Senhor Zé)
- Mas mesmo assim. Falamos de marginais que me escavacaram com o estabelecimento, me violaram duas filhas e um jardineiro e ainda comeram o resto dos cereais de chocolate, os meus preferidos, sabendo que só vou às compras no fim-de-semana e só aí posso comprar outra embalagem. São bandidos e são maus! E só uns atacadores atados uns aos outros?!

(Don Serôdio)
- Com nós de marinheiro… aquilo é coisa que nunca mais sai!

(Senhor Zé)
- Pois, mas assim não. Se é assim prefiro ir a outro lado. Ao Cobrador do Fraque, por exemplo. Ouvi dizer que por mais cem euros são meninos para atirar a cartola a alguém… e aquela abas de feltro ainda é coisa para aleijar.

(Don Serôdio)
- Então e se nós lhes colarmos um papel qualquer nas costas… tipo: “Sou um Palerma”. Já imaginou? Eles na rua todos lampeiros e as pessoas a apontarem e a rirem… Ah ah ah. Isso é que era um fartote. Era verdadeira humilhação. Pense nisso… (divertido)

(Senhor Zé)
- Não, peço desculpa. Vou a outro lado. (bate com a porta)

(Don Serôdio)
Ah vais a outro lado?! Então vê lá se um dia não ficas com o telemóvel em turco! Depois é ver-te a tentar mandar mensagens para Istanbul! Não tenhas cuidadinho não, meu menino! Grande palhaço! Onde é que está o meu crème Nívea?! (aos berros)

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