terça-feira, 16 de março de 2010

Episódios insólidos da vida de Vladimir Kükas (2)

Vladimir Kükas morreu com dois caninos de lince enterrados no dedo médio do pé direito. Todos acharam que não era motivo para o homem ter falecido e o único diagnóstico que a família se dignou a aceitar foi o de vista cansada.

Insólito foi o seguinte: Vladimir Kükas na semana anterior tinha ido cortar o cabelo ao mesmo sítio onde fôra 5 anos antes. No entanto, nessa altura era ele quem desbastava a cabeleira alheia e não ao contrário. Agora, o porquê do regresso, agora na qualidade de cliente, é que nunca ninguém conseguiu perceber. Nem tão pouco o facto de se ter apresentado na cadeira do barbeiro vestido de rena da Suécia. Não do Alasca, não façamos confusões. Da Suécia.

O barbeiro, esse, fez o seu trabalho sem dizer uma palavra acerca da indumentária de Vladimir. Mas talvez tivesse feito bem em avisá-lo do lince que trazia agarrado à tira de velcro que tinha nas costas. Felino esse que, como é sabido, haveria de o assassinar.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Morreu Novembro

Aquando da morte de Novembro, Dezembro decidiu revelar o ensaio crítico que elaborou acerca daquela pessoa, avaliação efectuada ainda a meio de Outubro.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Novembro é um bruxo albino.

Raramente sai à rua
com medo do frio e da chuva,
em vez de temer o sol.

É dos chás que ele engole.

Raras e vis mezinhas, que trocam sangue e juízo.

Está sempre a prepará-las,
é por elas que está vivo.
Embora haja quem discorde.

Enverga um manto preto
que contrasta com a pele
e condiz com a alma.
Brilhante combinação.

E assim é Novembro:
olhos escarlates,
dedos brancos,
dias mancos."

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Morreu Outubro

Aquando da morte de Outubro, Novembro decidiu revelar o ensaio crítico que elaborou acerca daquela pessoa, avaliação efectuada ainda a meio de Setembro.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Outubro é um pai que regressa.

Fugido de amores furtuitos,
volta para os braços da mulher.

E de mais quem quiser.

Tem pirralhos que chamam por ele,
gritam por atenção.
O pai abraça-os a todos e suplica por perdão.

De dentro do seu fato,
impecavelmente engomado,
ainda bate um coração.

Conta histórias à noitinha,
embala os filhos na lareira.
Dorme a noite inteira.

E assim é Outubro,
pobre homem envergonhado,
enfim perdoado."

Morreu Setembro

Aquando da morte de Setembro, Outubro decidiu revelar o ensaio crítico que elaborou acerca daquela pessoa, avaliação efectuada ainda a meio de Agosto.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Setembro é um caso mal resolvido.

Não é carne nem peixe,
não é homem nem mulher.
É um ser híbrido, muito mole.

Nunca tem opinião,
nem aprendeu a dizer não.
Dizem que vive a vida assim.

Torna-se aborrecido só de saber que existe.
Só dá pena a incerteza e saber que vive triste,
numa capa de pêlo sem forma nem feitio.

Dizem que não se decidiu.

E assim é Setembro,
na sua eterna questão,
sem qualquer opinião."

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Os estranhos também amam

Aos 23 anos, Fernando Tita Ferreira conheceu aquele que viria a ser o amor da sua vida. Foi ao comprar cigarrilhas, na Casa Havaneza, em pleno Chiado. Nunca a tinha visto ao balcão até aquele dia e, surpreendentemente, nunca mais a voltou a ver. Nem quando regressou no dia seguinte com a desculpa de comprar fósforos. Ela já lá não estava.

Talvez fosse amiga ou parente de um dos funcionários, estando apenas a fazer umas horas como favor, Fernando nunca soube ao certo. Mas era uma fonte de frescura que refrescava só pelo olhar. Cabelos dourados presos num carrapito, sardas na face, lábios reluzentes, tudo o que fazia lembrar a Primavera num único corpo de mulher. Corpo esse que aguçava a curiosidade, por entre as formas da camisa de linho branco, e fazia crepitar a gula do sósia pessoano.

Nesse mesmo dia, e sem ter trocado mais do que meia dúzia de palavras com ela, Fernando sabia que estava apaixonado. Que iria amar aquela mulher até ao último dos seus dias.

Materializou esse sentimento num pequeno poema que viria a escrever por volta das duas da manhã, enquanto combatia a insónia recorrente.



Do teu estranho amor por Fernando Tita Ferreira, 1982



Estranho
o Mundo.

Não só a palavra mas tudo.
A sua forma e conteúdo,
é tudo estranho para mim.

Abro os olhos e é estranho.
As cores, as formas, os sons,
os corpos das pessoas, os tons
que usam, que mostram,
que tanto mistério tem
e a forma como movem.

É tudo estranho para mim.

Mas há um raio de luz.
Não sei o que quer dizer.
Mas se a certeza não vier
para mim não é coisa estranha,
é a vida que quer saber.

E é só por isso...
mesmo só por isso,
que escolho viver.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

suicídio

está decidido! vou imolar.me dentro de um balde de praia trancado. é seguramente a única maneira de me perseguir com alma e conquistar eternidade. está decidido!

domingo, 6 de setembro de 2009

Morreu Agosto

Aquando da morte de Agosto, Setembro decidiu revelar o ensaio crítico que elaborou acerca daquela pessoa, avaliação efectuada ainda a meio de Julho.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:

"Agosto é um turista refilão.

Sua abundantemente
porque gosta de confusão.

Tem os sovacos molhados,
camisa colada
e cheira pior do que mal.

Mal educado e violento,
fica vermelho ao esbracejar.
Não conhece o seu lugar.
Nem sequer sabe estar.

Conduz nervosamente
e sempre directo ao Sul.
Depois leva tudo à frente.
Come sofregamente,
na véspera de ir nadar.

E assim é Agosto,
na sua fúria endiabrada,
de chegar sem saber estar."