sábado, 28 de março de 2009

O décimo oitavo andar

Célia Bastos morreu na sequência de um acto tresloucado de ciúmes do seu marido Pedro Brito, um biólogo de Vizela com quem se casara recentemente. Decorria o ano de 2003 e Célia encontrava-se em Londres. Tudo indica que era essa a cidade que servia de abrigo para os seus casos extra-conjugais, "ninho" de mil e uma noites nos braços de vários homens, sempre diferentes de mês para mês.

Três anos antes da sua morte, tinha-se suicidado o seu ex-marido, Ernesto Tinoco, num processo que teve tanto de penoso como de bizarro, dada a natureza invulgar do homem. Passado um ano deste acontecimento trágico, Célia casou-se então com Pedro Brito numa cerimónia curta e cinzenta, denunciando à partida um casamento por conveniência. Nesse dia, esteve presente no registo civil a pequena Rita Bastos Tinoco, filha do falecido Ernesto, e que em breve iria ficar também sem mãe nem padrasto.

Foi no décimo oitavo andar do Washington Mayfair Hotel que, numa manhã fria de Domingo, aconteceu a tragédia que chocou meia Londres. Uma porteira de Curzon Street acordou em sobressalto com um estrondo vindo da rua. Apressou-se a ir ver o que se passava, com medo de um ataque terrorista, e espantou-se ao ver dois corpos ensanguentados, de um homem e de uma mulher, esmagados no meio do asfalto por entre estilhaços de vidro e farpas de madeira. A polícia de Londres apressou-se a enviar oficiais para o local, entre eles o detective Wright: um veterano com demasiada vontade de se reformar e demasiado apreço por gin. No entanto, e apesar do seu fraco entusiasmo por exercer a actividade com profissionalismo, o detective encontrou um bilhete no quarto, por baixo do candeeiro de uma das mesas de cabeceira. Era um pedaço de papel pardo amarfanhado e escrito a lápis, que embora não estivesse assinado tudo levava a crer que tivesse sido redigido pelo próprio Pedro Brito. Rezava assim:

“Correr deixou de ser solução: é preciso aqui ficar, e assim justificar a natureza do meu acto.

Levei-te ao fundo de mim, para veres só por ti aquilo que eu nunca vi, e descobrires o que se esconde num ser tão vulgar assim: EU.

No dia do meu velório, aparecer de cara lavada é saber como a honra salvar. É tudo o que me resta depois de tudo o que fizeste, e acima do que não disseste, a traição que cometeste.

Ganhar, ganhar, ninguém ganha.
Empatámos os dois, tempo um no outro, as nossas vidas a cessar em segundos semelhantes, e deixarmos de respirar e de sermos seres pensantes, para largarmos enfim de ser.

Barricar o meu orgulho num décimo oitavo andar.
E ver-te assim dormir sem sonhares que eu aqui estou, os teus sonhos de outros temas não fui eu quem tos roubou, nem fui quem te abandonou.

Hoje, vejo em ti uma alma de aguarela, desbotada e mal tingida, tão fraca e amarelecida que não vejo cor em nós, não sinto amor em nós, não conheço nada em nós.

Se vivi tudo já, então não sei porque vivo.
Roubaste-me a história, o nome, o peso e o sorriso; tiraste-me tudo, mulher.
Roubaste-me a esperança e fizeste-o sem pensar.

E por isso aqui me tens para te dar mais um abraço, o derradeiro, para contigo assim voar. De um décimo oitavo andar.”

Diante da janela estilhaçada, o detective Wright voltou a embrulhar o pedaço de papel pardo escrito à mão, encontrado na mesa de cabeceira da penthouse. Lançou um último olhar para a azáfama de polícias e repórteres, lá em baixo. Deu mais uma passa no que restava do cigarro e exclamou para si próprio antes de sair: “Grandessíssimo Corno!”

terça-feira, 10 de março de 2009

Arrivederci, Don Serôdio

Don Serôdio nasceu em meados dos anos 30, algures na Brandoa.
O pai era cigano, a mãe era lisboeta, o avô coleccionava postais ilustrados.
Já ele gostava de ouvir falar o italiano.

Os Serôdios não eram abastados, viviam daquilo que a feira ia dando, e de um ou outro crimezeco cometido para ajustar as contas de alguém. Foi assim que, a pouco e pouco, o pequenote ganhou afeição pela nobre arte dos gangsters.

Ao tornar-se gente, tornou-se também o Don da Família criminosa, à boa maneira siciliana. Don Serôdio.
O homem que todos temiam, o "Demónio da Brandoa", o "Orangotango louco da linha de Sintra", o "Chicharro-estripador que mora ao pé da Amadora". Muitos nomes para um só homem sedento de sangue e dinheiro.

Sob a liderança do jovem, a Família Serôdio alcançou muitos mais membros, ansiosos por ganhar o respeito do seu ídolo. Cada um pior que o outro. Tão insurrectos, tão marginais, que nem deram pelo 25 de Abril. Para eles era igual, continuavam sem obedecer a ninguém senão ao seu bem-amado líder.

Após décadas no auge do crime organizado, Don Serôdio começou a perder faculdades e a tornar-se "mole". Tornou-se também uma presa fácil para a polícia, tendo sido detido precisamente no dia em que fazia cinco anos que os Serôdios não cometiam nenhum acto ilegal. Contra ele estava toda uma vida manchada por crimes de toda a espécie e feitio, tão graves e cruéis que parecia impossível ter sido um só homem a comandá-los. Mas, aos setenta anos, o Don preferia pregar partidas, rir-se às gargalhadas e ser incoerente, como um bom e velho idoso senil.

Don Serôdio morreu pouco tempo depois de ter ido "ver o sol aos quadradinhos", ninguém sabe muito bem como. Apareceu asfixiado na sua cama, com a almofada a tapar-lhe a cara. O caso foi arquivado como suicídio, apesar de todos saberem que o veredicto fora comprado por Ruizinho "Calzone" Figueiras, um homem que há muito ambicionava o título do velho Serôdio.

Deixamos a transcrição de uma das investigações "sob disfarce" efectuadas pela polícia no gabinete de Don Serôdio. Terá sido uma das mais arriscadas pois envolveu um agente "no terreno" há vários anos. Mas felizmente nessa altura o velho já tinha perdido o juízo...

O escritório é obscuro e tem um estilo clássico, semelhante ao de Don Vitto Corleone do filme “The Godfather” de Francis Ford Coppola. Sentado atrás de uma secretária está Don Serôdio: um indivíduo gordo, muito sisudo, com cabelo branco penteado para trás à mafioso. Usa fato e gravata, e esfrega as mãos, pensativo. Ao seu lado, em pé, e com os braços atrás das costas, encontra-se um outro homem mais novo, alto, magro, com o cabelo claro pela base do pescoço. Usa óculos e um grande laço que lhe dá um aspecto ridículo. Em frente da mesa está o agente Fonseca, sob o nome de Senhor Zé, uma personagem que representa há anos para ganhar a confiança da máfia e incriminar os seus piores membros.

(Don Serôdio esfrega as mãos vigorosamente, soa a música do filme “The Godfather” entoada por alguém com a boca fechada)
(Don Serôdio que continua a esfregar as mãos nitidamente incomodado, a cantilena prossegue)

(Don Serôdio)
- EPÁ, CALA-TE!! – grita de repente, para o homem do laço que se encontra o seu lado, denunciando o intérprete. Don Serôdio fica a olhar para o homem que se afasta cabisbaixo.

(Don Serôdio)
- Quer um homem colocar em prática trafulhices mafiosas e é sempre este chinfrim insuportável… squiiik squiiiik squiiik !(fazendo gestos com as mãos) Porque é que não vai à sua vida? Não tem cabeças de cavalo para aviar?!

(Homem do Laço, a olhar para o chão)
- …

(Don Serôdio, virando-se agora para o Senhor Zé)
- E fique você sabendo que a culpa de tudo isto é sua! Vem-me para aqui pedir favores e eu enervo-me logo… Fico com as mãos todas secas, pá! (retira uma embalagem azul de Nívea e, com dificuldade, esfrega um grande pedaço de creme nas mãos. Atrapalha-se a fechar a embalagem metalizada, com as mãos gordurosas e, berrando, atira com a embalagem para cima do Homem do Laço)

(Don Serôdio)
- AAARG!! Ainda aqui está?! Desapareça, já disse! (aos berros)

(Homem do Laço)
- Sim, Don Serôdio. (sai, limpando o crème Nívea do casaco com um lenço)

(Senhor Zé)
- Padrinho, eu detesto aborrecê-lo. Não teria vindo até si se não fosse um caso mesmo grave. (fala nervosamente)

(Don Serôdio)
- Ouça, eu já sei o que hei-de fazer com os patifes que lhe assaltaram a Tabacaria.

(Senhor Zé)

- Ah sim?!

(Don Serôdio)
- Muito simples.

(Senhor Zé)
- Obrigado, Padrinho! (beijando-lhe a mão, e cuspindo logo de seguida o crème Nívea) Eu sabia que podia contar com a sua “mão pesada”. Aquela gentalha não se ficará a rir!

(Don Serôdio)
- Esta mesma noite, o Luca Zarolho fará uma visitinha a esses facínoras.

(Senhor Zé)
- Eh eh eh eh. (entusiasmado)

(Don Serôdio)
- Quando fecharem os olhos num sono profundo… Luca atar-lhes-á os atacadores das botas! Ah ah ah! Quero vê-los aos saltinhos de manhã, aos trambolhões! (levanta-se e põe-se aos saltos, com os pés juntos) Ai o que me aconteceu?! Ai o que me aconteceu?! Ah ah ah! (acalmando-se) Meu caro amigo. Nunca mais tentarão nova brincadeira. Isso eu lhe garanto.

(Senhor Zé)
- Só isso? (desiludido)

(Don Serôdio)
- Só?! Acha pouco?! (espantado)

(Senhor Zé)
- Confesso que estava à espera de algo mais… forte.

(Don Serôdio)
- Mais forte ainda?! Só se eu pedir ao Luca para lhes enfiar bombinhas chinesas nos peúgos… para ajudar à festa. O que acha?

(Senhor Zé)
- Pois… isso é capaz de arreliar, é. Mas ainda assim, esperava algo mais bruto. Sei lá, uma sova, uma ameaça de morte, um tiro… Vocês são a Máfia, certo?

(Don Serôdio)
- Correcto, mas lá por sermos a Máfia não quer dizer que não nos possamos divertir um bocadinho. As rajadas de metralhadora, as bombas, os sequestros… tudo isso é fascinante, não me interprete mal. Mas de há uns anos para cá andamos a especializar-nos em partidas. “Quase todo o inconveniente, o dobro das gargalhadas” é o nosso slogan.

(Senhor Zé)
- Mas mesmo assim. Falamos de marginais que me escavacaram com o estabelecimento, me violaram duas filhas e um jardineiro e ainda comeram o resto dos cereais de chocolate, os meus preferidos, sabendo que só vou às compras no fim-de-semana e só aí posso comprar outra embalagem. São bandidos e são maus! E só uns atacadores atados uns aos outros?!

(Don Serôdio)
- Com nós de marinheiro… aquilo é coisa que nunca mais sai!

(Senhor Zé)
- Pois, mas assim não. Se é assim prefiro ir a outro lado. Ao Cobrador do Fraque, por exemplo. Ouvi dizer que por mais cem euros são meninos para atirar a cartola a alguém… e aquela abas de feltro ainda é coisa para aleijar.

(Don Serôdio)
- Então e se nós lhes colarmos um papel qualquer nas costas… tipo: “Sou um Palerma”. Já imaginou? Eles na rua todos lampeiros e as pessoas a apontarem e a rirem… Ah ah ah. Isso é que era um fartote. Era verdadeira humilhação. Pense nisso… (divertido)

(Senhor Zé)
- Não, peço desculpa. Vou a outro lado. (bate com a porta)

(Don Serôdio)
Ah vais a outro lado?! Então vê lá se um dia não ficas com o telemóvel em turco! Depois é ver-te a tentar mandar mensagens para Istanbul! Não tenhas cuidadinho não, meu menino! Grande palhaço! Onde é que está o meu crème Nívea?! (aos berros)

sexta-feira, 6 de março de 2009

César

há falta de melhor, comprei um camião em forma de ipsílon,
saí para a estrada, atropelei três pessoas e um idoso, também pessoa mas diferente das pessoas por ser uma espécie de extinção,
um extintor virou-se para mim, sorriu-me, oxigenou-me e salpicou-me com ou ou ou´s
e lá fui eu rente à berma da estrada,
amestrado por uma forma geométrica com motor, sem amor,
um larápio de vielas, sem velas que me alumiassem um caminho de terra com anjos e enfins,
mais menos, menos mais, uma vírgula a mais nunca é de menos,
até quando um taxi me atropela e morro,
morri!

domingo, 1 de março de 2009

A última dança de Bernardino Roupão

Bernardino Roupão era um homem pacato e sossegado, não necessariamente por esta ordem. Não gostava de fazer nada, nem sequer gostava da mulher: uma obesa septuagenária com quem tinha casado quando era novo, e quando ela não era tão velha. Bernardino Roupão passava os dias enfiado na vestimenta com o mesmo nome, a arrastar-se nas suas pantufas de coelho, a pensar em nada enquanto fingia que se preocupava por não ter ocupação. Gritava com a mulher de vez em quando e ouvia os berros dela em resposta. Nenhum dos dois gostava de fazer nenhum. Mas apesar de se detestarem e de discutirem com frequência, mantinham uma relação de tolerância preguiçosa, falavam como se apreciassem a companhia um do outro mas na realidade não havia nada que não estivessem dispostos a fazer para fugir para longe.

Isto se realmente se prestassem a fazer alguma coisa.

Viam TV o dia inteiro, e até ao dia da morte de Bernardino Roupão pode dizer-se que idolatravam o ícone dos media que é Manuel Luís Goucha. "Um homem todo jeitoso" segundo as palavras da senhora Roupão. Um dia, Bernardino decidiu bambolear-se, para provar que ainda tinha aquilo a que os velhos gostam de chamar de genica. Já não tinha. Morreu.

A senhora Roupão gritou de dor e riu-se a seguir, sabia que a vida sedentária que levava em breve lhe pregaria a mesma partida. Num futuro próximo, estaria ela estatelada no meio do tapete de Arraiolos, no lugar do marido. Mas isso não lhe fazia confusão, estava radiante por saber que tão cedo não voltaria a ouvir os queixumes irritantes de Bernardino, aquela voz aguda que lhe fazia cóceguinhas insistentes no ouvido. Ele estava morto e ela estava livre. Ou seria ao contrário?

Não há dúvida que Bernardino Roupão e a sua esposa eram um casal aborrecido que aborrecia quem os conhecia. Nunca saíam de casa e raramente retiravam os seus roupões. Segundo os relatos de uma marmota que habitava no apartamento em cima do deles, a conversa que levou Bernardino à morte terá sido alguma coisa como isto:

(senhora Roupão)
- Este Goucha é um moço todo jovem e divertido... e diz que já não é novo...
(Bernardino Roupão)
- Pois não é não...
(senhora Roupão)
- Diz que não... (pausa) Sempre com estas roupas coloridas e vistosas...
(Bernardino Roupão)
- À palhaço, não é?
(senhora Roupão)
- Pois é. É mesmo à palhaço... mas ficam-lhe bem.
(Bernardino Roupão)
- Pois... a ele ficam... mas eu acho que ainda apreciava mais quando ele fazia coisas lá com a outra... a do queixo grande...
(senhora Roupão)
- Isso é que eram tempos, sim senhor. Nessa altura tinha este malandro bigode.
(Bernardino Roupão)
- É verdade. Agora substituiu o bigode por uns óculos espampanantes. São gostos...
(senhora Roupão)
- Eu gosto é quando ele dança... o que eu me divirto a vê-lo bambolear-se...
(Bernardino Roupão)
- E eu...! Passo aqui as manhãs a ver isto, sempre à espera do bambolear... que bem se bamboleia ele...
(senhora Roupão)
- Se eu tivesse a idade dele também me bamboleava na televisão.
(Bernardino Roupão)
- Também eu. E até era capaz de me bambolear bem mais vezes que o Goucha.
(senhora Roupão)
- Acredito, homem. Antigamente muito te bamboleavas tu. Não era era na televisão...
(Bernardino Roupão)
- Pois não, não era. Mas era um bambolear digno... assim como o dele (apontando para a televisão).
(senhora Roupão)
- Eu tenho para mim que ainda tenho forças para me bambolear hoje em dia, vê lá tu...
(Bernardino Roupão)
- Ó mulher, não te ponhas com ideias. Ele bamboleia-se tanto porque é mais novo que nós. Ainda vais fracturar alguma anca ou assim...
(senhora Roupão)
- Mas eu gostava de ver como ainda me bamboleio... A ver se consigo fazer como ele...
(Bernardino Roupão)
- Bamboleias-te depois de ires ao doutor, então. Para que seja um bambolear seguro.
(senhora Roupão)
- Está bem homem, se calhar é melhor... adio o bamboleio para depois.
(Bernardino Roupão)
- Este Goucha é uma inspiração para todos nós.

Passados alguns minutos, com o intuito de se superiorizar à esposa e de mostrar a sua boa forma, Bernardino Roupão ter-se-á levantado do sofá, dando início a uma enérgica dança.

A sua última.