sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Ernesto Tinoco

O Santíssima Trindade tem o prazer de reproduzir uma carta de suicídio enviada por Rita Bastos Tinoco, filha do "triste-coitado-que-se-suicidou".


“Querida Célia,

Despeço-me deste mundo depois de jantar o maravilhoso quiche de legumes que cozinhaste antes de sair. Estava tão bom, conseguiste evidenciar o sabor da cebola e do alhinho como eu tanto gosto, obrigado! Afianço-te, custar-me-ia muito mais a partir se o fizesse com o sabor de uma batata frita ou até de uma ervilha. Não é que não goste de ervilhas, mas o sabor da ervilha perde-se com facilidade, parece daquelas pastilhas elásticas baratas e que custam mascar. Como costuma dizer o teu pai, a quem desde já envio um forte abraço e peço desculpa por não me ter despedido directamente dele, “ervilha é gravilha, perde-se no vento e não brilha!”... Relativamente à batata frita, não tenho muito a apontar, sabe sempre bem, mas não queria partir com excesso de gordura. Aliás, a partir do momento em que decidi suicidar-me com os tiros de duas armas diferentes (por uma questão de logística corporal), uma apontada ao lobo frontal do cérebro e outra apontada aos intestinos, tentei garantir que o meu corpo estava livre de qualquer tipo de toxinas. De facto, não sei se reparaste, mas ultimamente bebia bastante água, algum chá e nenhuma bebida alcoólica ou com gás. Para além disso, controlei as minhas fezes e restante matéria fecal, organizando e disciplinando o meu corpo para urinar e defecar todos os dias à mesma hora, a mesma quantidade. Isto explica o cronómetro e a balança que ultimamente levava para a casa-de-banho. O propósito foi lógico: quando a bala me atingisse e o meu corpo se espalhasse, evitar que todo o tipo destas substâncias se propagassem pela sala, a fim de não destruir os sofás e suporte de pés, a mesinha do candeeiro e revistas, as estantes com os nossos, agora teus, livros, a televisão com ecrã plasma, o leitor de dvds, a aparelhagem, as colunas da aparelhagem e do dvd, a carpete e o mini-bar. Não estarei cá para ver o resultado, porém espero sinceramente não estragar nada... desde já te peço para guardares a colecção de migalhas de bolacha que fui juntando na terceira gaveta da minha escrivaninha. Bem, resta-me agradecer-te a paciência e pedir-te desculpa por não ter lavado a loiça da minha última refeição, beijinho eterno, Ernesto Tinoco

p.s: O meu último espirro vai a leilão!!!”


Ernesto Tinoco nasceu em Oeiras a 29 de Fevereiro de 1960. A partir dos nove anos apercebeu-se que “era diferente de todos”, conforme recorda um amigo de infância a quem Ernesto ficou a dever 25 escudos, porque só celebrava o aniversário de quatro em quatro anos. Esta situação criou-lhe uma dissonância que nenhum calendário ou explicação matemática conseguiram dissipar. Deprimido desde então, iniciou um périplo pelas estradas regionais que separavam Oeiras de Lisboa. As suas caminhadas afastaram-no da família, dos amigos, da escola e da plena vivência da juventude, aproximando-o, no entanto, com sucesso de Lisboa. Aos quinze anos cometeu a primeira tentativa de suicídio, lançando-se da janela de casa dos tios, em Carcavelos. Entretanto, com vinte e um anos foi “encarcerado involuntariamente”, segundo propalava, na ala psiquiátrica do Hospital São Francisco Xavier, depois de repetir ao longo do mesmo dia por entre sussurros, sorrisos e urros a frase “ajudem-me a afundar o porta-aviões que tenho no pulmão direito”. Porém, o percurso de Ernesto não foi marcado só por baixos. O seu momento alto ocorreu no dia 29 de Fevereiro de 1988 quando, com vinte e oito anos, “ou seriam sete?” questionou na altura, casou com Célia Bastos. Não registando quaisquer episódios ou sinais de demência, para além de nova tentativa frustrada de suicídio através da inalação de espinhas de carapau, Ernesto passou os anos seguintes na sua vivenda na Rua da Estação, em Oeiras. Finalmente, a 1 de Março de 2000, acabou por se suicidar com dois tiros ao som de Stabat Mater de Verdi, álbum cujo cd estava riscado. No seu testamento fez questão de oferecer todas as suas meias “aos pretinhos da Guiné”, escreveu. Célia recorda este como um dos momentos mais felizes de Ernesto, “foi há cerca de dois meses, ele andava visivelmente entusiasmado com a história da Guiné e queria dar tudo àqueles pretos golpistas!!”. Ernesto nunca chegou a conhecer a sua filha, Rita Bastos Tinoco, nascida a 1 de Abril de 2000.

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