quarta-feira, 15 de abril de 2009

Bernardino Roupão em terapia de regressão (1)


Poucos meses antes de morrer, Bernardino Roupão recebia em sua casa um hipnotizador para dar início a uma série de sessões de terapia de regressão. O objectivo era descobrir como é que o casal Roupão se tinha tornado tão incrivelmente entediante, sem um único resquício de aventura ou sentido de humor. Apenas se riam com Manuel Luís Goucha, o "monstro sagrado" da comunicação que, com as suas roupas fluorescentes, lhes animava as manhãs todos os dias. 

Bernardino Roupão queria descobrir a razão de tanta pobreza emocional. E essa curiosidade deu lugar a uma série de relatórios que descreviam na íntegra os relatos do velhote durante as sessões. Quando morreu, o diagnóstico estava feito mas nunca foi revelado. Dado o desinteresse da senhora Roupão, acabaria por ser destruído sem que ninguém, para além do hipnotizar, soubesse no que consistia.

Aqui fica um excerto das palavras proferidas por Bernardino Roupão no dia 13 de Março de 2004, Sábado, cuja sessão decorreu das 15h às 16h30 na moradia do casal.

"É um telemóvel bastante invulgar, demasiado infantil ou efeminado ainda não decidi, aquele que trago no bolso do casaco. 
Tem uma capa de peluche em forma de ursinho amarelo. Tão querido…
Mas para que é que eu fui apanhar esta merda?!
Não o quero para nada. Não tenho filhos nem sobrinhos, até mulher ou namorada que apreciem coisas destas. Não tenciono ir entregá-lo à polícia, com certeza que se poriam logo a gozar. Desde o sub-chefe Silva ao Mendonça do reboque. Mais vale deitá-lo no lixo de vez. Como é que um objecto tão pequeno consegue causar-me tanto desconforto?
Ai, agora está a tocar. A música do Ursinho Misha. Que grande surpresa.
Não, não vou deitá-lo fora. Vou atender e descompor a menina de coro que o perdeu. Para que nunca mais perca esta imbecilidade, ou outra qualquer que possua.

- Estou sim!

- Estou. – responde uma voz anasalada, pouco semelhante à de uma criança normal.

- Olhe, aproveito já para dizer que este telemóvel não é meu. Encontrei-o no chão e espero poder devolvê-lo ao dono o mais rápido possível. Não tenho por hábito falar para ursinhos de peluche, sabe?!

- Nem você nem ninguém, meu amigo. É por isso que me sinto tão só, sabe? – a voz de tão estranha quase que deixava de se ouvir, como a de um boneco animado. – Já agora, tenho o prazer de estar a falar com…

- Bernardino Roupão. Mas quem é você? Sabe onde posso encontrar a dona deste aparelho?

- Muito prazer, Bernardino. Eu sou o Ursinho Tédio… Tédio Bear se preferir. – a conversa estava a tornar-se bizarra. – Costumo perder-me por aí à procura de alguém com quem trocar impressões. Não acontece muitas vezes, dizem que sou chato e que não tenho conversas interessantes. Que provoco o tédio. Por isso, evitam falar comigo e daí eu estar sempre a morrer de tédio… Eh eh eh tem uma certa graça… Estou?

- Estou sim. Isto é uma brincadeira? Vou deixar o telemóvel no banco do jardim, ok?

- Não faça isso! Junto aos pombos, não! – o aparelho parecia berrar de dor enquanto o pousava nas tábuas verdes do assento.

Que dia estranho. E, ao mesmo tempo, entediante."

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