segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Número oito

O número oito foi a primeira materialização bem sucedida de Salazar Coentro. Após vinte anos de extensas pesquisas, Salazar Coentro, quarenta anos, filho de Cristino Coentro e Cristina Coentro, conseguiu finalmente dar à luz o número oito. Foi no dia doze do mês sete do ano de dois mil, depois de Cristo. Apresentado à nação com um discurso que passou em directo em todos os meios de comunicação social que transmitem directos, o número oito foi o resultado inesperado para um problema mais que esperado, depois de todos os limites decorrentes do número sete, admitido à escala numérica internacional um quinto de século antes. Por conseguinte, o problema de que Salazar Coentro partiu colocava-se em encontrar a forma do número posterior ao sete, vulgo manifestação física, dado que o conteúdo já se encontrava definido há muito. Aliás, considerando-se a existência do infinito, deve-se ter em consideração que depois do agora materializado oito, faltam todos os seguintes números...

Apaixonado por estatística, numerologia e caricas, Salazar Coentro desde cedo se dedicou à materialização de números, tendo já no currículo um esboço para o número seis, aquando dos rabiscos e demais devaneios que produzira na escola primária. Considerado um génio, Salazar Coentro enquanto criança demonstrou um desenvolvimento precoce, dotado de pensamento lateral e de uma alma que à noite se revelava sonâmbula. Aliás, variadas foram as vezes que Salazar Coentro acordava por a sua alma estar a fazer contas de cabeça. Agora que a Fundação para a Escala Numérica Mundial aceitava o seu número oito, Salazar Coentro não cessava em entrevistas e reportagens, não sendo raros os jornalistas que o acompanhavam diariamente, desde que saía até que regressava a casa. Alguns chegaram até a montar tenda bem à frente do seu lote. Se de início todo este mediatismo foi ao encontro de um certo orgulho e brio, com o passar do tempo estes mesmos sentimentos deram lugar à obstinação e ao incómodo. Com naturalidade, Salazar Coentro passou a enfrentar jornalistas, correndo-os à pedrada e esmigalhando-os com insultos, fechando-se em copas na divulgação e explicação do seu raciocínio, do seu novo trabalho, do que comia, de como dormia, das previsões para a forma do número nove. Subitamente, o próprio trabalho passou a estar afectado pois Salazar Coentro passara a ter dificuldades de concentração. Irritado, passou a dirigir um ódio contra as pessoas em geral e contra o número oito em particular. Afinal de contas, tinha sido este a causa de todo o mal, cogitava. Tal não foi de estranhar que no dia vinte do mês oito do ano de dois mil, depois de Cristo, Salazar Coentro tenha tomado uma decisão: queimar todos os papéis em que desenvolvera o raciocínio para a forma do número oito. E assim foi, a forma do número oito, que durante vinte anos ocupara o pensamento diário de Salazar Coentro, acabara de ser consumida, engolida e devorada por um fogo que, de tão quente que estava, o transformou em cinza em apenas oito minutos. Que coincidência esta... Uma cópia do raciocínio que levou à forma do número oito encontra-se actualmente na sede da Fundação para a Escala Numérica Mundial, porém os técnicos precisam ainda de compreender todo o raciocínio para chegar ao resultado final, cujo exemplar único fora consumido pelo fogo. O número oito transformara-se num hiato de morte, num lusco-fusco de vida. Salazar Coentro acabou por ser preso, acusado de crimes contra a humanidade e com pena de prisão perpétua, como desfecho lógico do impedimento de beneficiar da legítima defesa de advogado durante o julgamento, depois de se recusar a recuperar a forma para o número oito. Habitando a cela 5H do estabelecimento prisional de Lisboa, Salazar Coentro é confrontado diariamente por uma série de pressões para reproduzir a forma do número oito. Dada a sua constante recusa, à sua cela foi retirada a retrete e o colchão, tendo Salazar Coentro de dormir em contacto directo com o frio da pedra. Dotado de uma pequena janela, com duas grades de quatro centímetros de diâmetro e separadas por três centímetros, a cela tem como única vista o aterro da prisão. Resta acrescentar que os dias de Salazar Coentro são passados a ler, escrever e fazer cócegas à sua alma. Por vezes descobrem-se rabiscos que aparentam um novo número, porém, até hoje, Salazar Coentro sempre se recusou na concretização do mesmo. Com a morte do número oito, morreu também um pouco da alma de Salazar Coentro, agora entregue a uma distorção da realidade sem igual.

1 comentário:

  1. Porra pá! Este gajo dá-lhe... só gostava de ter mais tempo para te acompanhar! Me aguarde.

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