sexta-feira, 15 de maio de 2009

A ratazana branca

Vitória Sanfim chegou a sussurrar o seu último pesadelo antes de morrer.
Tinha acabado de acordar e os seus olhos estavam mais negros e encovados do que nunca. Já pouca era a vida que lhe restava no corpo.

"Sonhei com uma ratazana branca.
Muito feia e desgrenhada.
Reles, pulguenta e manca.

Passou por mim a correr esquiva
e enfiou-se na minha cama.
Para sujar o leito de lama.

Tinha urgência em morrer. E eu de adormecer.
Tentei bater-lhe com a vassoura e ela foi-se porta fora.

Fiquei só 
de hora a hora.

Também assim a minh´alma: reles, pulguenta e manca.
Tinha urgência em morrer.

Sonhei com uma ratazana branca."

quarta-feira, 13 de maio de 2009

de petuchki a moscovo

em petuchki, começa em segundos a transmissão de um cancro tímido e sibilante.
erofeev, o mosquito debutante pelas ruas da cidade, é o agente encarregue de tão imprevista actividade.
ganhou o estatuto pela sua natureza e não por casual favor.
de bico pontiagudo e corpo rijo mas delgado, com faro para a carne humana e mestria de toque, iniciará a transmissão do surto presa a presa sem delongas.
e é assistir, a partir de agora em directo ou depois deste momento em diferido [conforme a opção e oportunidade], ao declínio da sociedade.
primeiro os velhos, depois os mais fracos. de seguida os mais novos e as mulheres. e finalmente os mais fortes.
de tão ordinários, tornam.se presas fáceis. de corpo a esqueleto. de esqueleto a carcaça. numa espiral de decadência redundante.
um a um. uns a seguir aos outros. todos. são consumidos como cornijas de papel em fogo, por agonia, em paralisia e sem capacidade de debate.
o cálculo dá certo. o resultado satisfaz a expectativa. zero.
e a partir de petuchki, erofeev inicia o périplo para moscovo. em mistério, é acompanhado somente pela sua sombra, num rasto de luz sem bandeira.
pelo caminho, a civilização vai desaparecendo em ressaca.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Episódios insólitos da vida de Vladimir Kükas (1)


Vladimir Kükas morreu em 1987 enquanto urinava na WC do seu local de trabalho. 
Foi atacado por um lince ibérico sem ter tido tempo de apertar a braguilha. 

Nunca mais ninguém avistou o lince ibérico responsável pelo homicídio. Assim como nunca ninguém conseguiu explicar o que estava ele ali a fazer.

Apenas mais um episódio insólito na vida de Vladimir Kükas, como muitos que teve ao longo da sua curta existência.

Nasceu em 66, no Barreiro. Era suposto ter-se chamado José Lopes, mas devido a um engano no registo, causado por uma mulher de longas barbas que apareceu montada numa girafa de meio metro com cabeça de lebre, outro episódio insólito, acabou por adoptar o nome de um reformado soviético que gostava de filmes de animação.

Vladimir Kükas não foi feliz em vida. Nem em morte. 

Pode dizer-se que foi, todo ele, insólito.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Morreu Abril

Ontem morreu Abril.
Maio avaliou-o a meio de Março e, na altura, elaborou um ensaio crítico acerca da sua pessoa.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:


"Abril é um puto mentiroso.
Traquinas e sebento, de rosto lambuzado.
Blusão de penas aberto, a deixar entrar o frio que o torna constipado.
Mas nem assim menos travesso.

Gosta de enviar bilhetinhos,
com manias de conquistador.

Mas só conquista a dor nos outros com o seu jeito atrapalhado.

Com um ar abananado de pelintra descuidado.

E assim é Abril,
cheio de enganos e de chuvas,
que enganam os trovões."