domingo, 1 de março de 2009

A última dança de Bernardino Roupão

Bernardino Roupão era um homem pacato e sossegado, não necessariamente por esta ordem. Não gostava de fazer nada, nem sequer gostava da mulher: uma obesa septuagenária com quem tinha casado quando era novo, e quando ela não era tão velha. Bernardino Roupão passava os dias enfiado na vestimenta com o mesmo nome, a arrastar-se nas suas pantufas de coelho, a pensar em nada enquanto fingia que se preocupava por não ter ocupação. Gritava com a mulher de vez em quando e ouvia os berros dela em resposta. Nenhum dos dois gostava de fazer nenhum. Mas apesar de se detestarem e de discutirem com frequência, mantinham uma relação de tolerância preguiçosa, falavam como se apreciassem a companhia um do outro mas na realidade não havia nada que não estivessem dispostos a fazer para fugir para longe.

Isto se realmente se prestassem a fazer alguma coisa.

Viam TV o dia inteiro, e até ao dia da morte de Bernardino Roupão pode dizer-se que idolatravam o ícone dos media que é Manuel Luís Goucha. "Um homem todo jeitoso" segundo as palavras da senhora Roupão. Um dia, Bernardino decidiu bambolear-se, para provar que ainda tinha aquilo a que os velhos gostam de chamar de genica. Já não tinha. Morreu.

A senhora Roupão gritou de dor e riu-se a seguir, sabia que a vida sedentária que levava em breve lhe pregaria a mesma partida. Num futuro próximo, estaria ela estatelada no meio do tapete de Arraiolos, no lugar do marido. Mas isso não lhe fazia confusão, estava radiante por saber que tão cedo não voltaria a ouvir os queixumes irritantes de Bernardino, aquela voz aguda que lhe fazia cóceguinhas insistentes no ouvido. Ele estava morto e ela estava livre. Ou seria ao contrário?

Não há dúvida que Bernardino Roupão e a sua esposa eram um casal aborrecido que aborrecia quem os conhecia. Nunca saíam de casa e raramente retiravam os seus roupões. Segundo os relatos de uma marmota que habitava no apartamento em cima do deles, a conversa que levou Bernardino à morte terá sido alguma coisa como isto:

(senhora Roupão)
- Este Goucha é um moço todo jovem e divertido... e diz que já não é novo...
(Bernardino Roupão)
- Pois não é não...
(senhora Roupão)
- Diz que não... (pausa) Sempre com estas roupas coloridas e vistosas...
(Bernardino Roupão)
- À palhaço, não é?
(senhora Roupão)
- Pois é. É mesmo à palhaço... mas ficam-lhe bem.
(Bernardino Roupão)
- Pois... a ele ficam... mas eu acho que ainda apreciava mais quando ele fazia coisas lá com a outra... a do queixo grande...
(senhora Roupão)
- Isso é que eram tempos, sim senhor. Nessa altura tinha este malandro bigode.
(Bernardino Roupão)
- É verdade. Agora substituiu o bigode por uns óculos espampanantes. São gostos...
(senhora Roupão)
- Eu gosto é quando ele dança... o que eu me divirto a vê-lo bambolear-se...
(Bernardino Roupão)
- E eu...! Passo aqui as manhãs a ver isto, sempre à espera do bambolear... que bem se bamboleia ele...
(senhora Roupão)
- Se eu tivesse a idade dele também me bamboleava na televisão.
(Bernardino Roupão)
- Também eu. E até era capaz de me bambolear bem mais vezes que o Goucha.
(senhora Roupão)
- Acredito, homem. Antigamente muito te bamboleavas tu. Não era era na televisão...
(Bernardino Roupão)
- Pois não, não era. Mas era um bambolear digno... assim como o dele (apontando para a televisão).
(senhora Roupão)
- Eu tenho para mim que ainda tenho forças para me bambolear hoje em dia, vê lá tu...
(Bernardino Roupão)
- Ó mulher, não te ponhas com ideias. Ele bamboleia-se tanto porque é mais novo que nós. Ainda vais fracturar alguma anca ou assim...
(senhora Roupão)
- Mas eu gostava de ver como ainda me bamboleio... A ver se consigo fazer como ele...
(Bernardino Roupão)
- Bamboleias-te depois de ires ao doutor, então. Para que seja um bambolear seguro.
(senhora Roupão)
- Está bem homem, se calhar é melhor... adio o bamboleio para depois.
(Bernardino Roupão)
- Este Goucha é uma inspiração para todos nós.

Passados alguns minutos, com o intuito de se superiorizar à esposa e de mostrar a sua boa forma, Bernardino Roupão ter-se-á levantado do sofá, dando início a uma enérgica dança.

A sua última.

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