quinta-feira, 30 de abril de 2009

Os elefantes também se abatem

Uma confissão de Vitória Sanfim no leito da morte.
Episódio ocorrido em Trás-os-Montes, no final da década de oitenta:

"- Sou um elefante! - a velha abraçou-me e deu-me um beijo terno.
Chorei de tanto rir. E bati-lhe a seguir.
- Dona Aurora, um alguidar na cabeça não faz de si um elefante..."

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Eu sou um ovo cozido!

Ezequiel Redondo passou a vida inteira a acreditar que era um ovo cozido.
Seria louco? Teria ele uma obsessão? Os vizinhos não sabiam, apenas repetiam que nunca tinham tido melhor vizinho.

“- Era um homem muito pacato, sossegado…”, diziam eles.
E era, de facto.

Ezequiel Redondo, na sua insana visão de si próprio, passava os dias sentado na cadeira de balouço, a pensar em nada, sem fazer nada. Tudo porque, segundo ele, era isso que se esperava de um ovo cozido.

Um dia recebeu a visita de uma equipa de reportagem, uma jovem jornalista e um operador de câmara entraram-lhe pela casa adentro. Queriam entrevistá-lo para a televisão. Mas ele nada disse, limitou-se a olhar para eles, enquanto se balouçava na cadeira.

A repórter, inquieta, insegura, perguntava:
“- Um ovo cozido humano?! Coisa nunca vista! Quer comentar?”.
Sem sucesso, nem uma palavra.

Até que, numa manhã cinzenta, aconteceu uma mudança radical.

Ezequiel Redondo levantou-se da cadeira, despiu-se lentamente, quase como em câmara lenta, gritando ao mesmo tempo:
“- Eu sou um ovo cozido!”.

Depois, começou a arrancar a própria pele, a descascar-se como o ovo que acreditava ser, sem chorar nem gemer, com uma expressão terna no olhar.

Os vizinhos assomaram logo à porta, curiosos do que se estava a passar, preocupados pelo destino incerto do seu companheiro mais sossegado.

O senhorio achou que o grito aflitivo que ouvira, tão estranho e aterrador, era razão suficiente para arrombar a porta. Com um pontapé resolveu o assunto.

Encontrou Ezequiel Redondo feliz, meio vivo, meio morto, meio aluado, já completamente descascado.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Bernardino Roupão em terapia de regressão (1)


Poucos meses antes de morrer, Bernardino Roupão recebia em sua casa um hipnotizador para dar início a uma série de sessões de terapia de regressão. O objectivo era descobrir como é que o casal Roupão se tinha tornado tão incrivelmente entediante, sem um único resquício de aventura ou sentido de humor. Apenas se riam com Manuel Luís Goucha, o "monstro sagrado" da comunicação que, com as suas roupas fluorescentes, lhes animava as manhãs todos os dias. 

Bernardino Roupão queria descobrir a razão de tanta pobreza emocional. E essa curiosidade deu lugar a uma série de relatórios que descreviam na íntegra os relatos do velhote durante as sessões. Quando morreu, o diagnóstico estava feito mas nunca foi revelado. Dado o desinteresse da senhora Roupão, acabaria por ser destruído sem que ninguém, para além do hipnotizar, soubesse no que consistia.

Aqui fica um excerto das palavras proferidas por Bernardino Roupão no dia 13 de Março de 2004, Sábado, cuja sessão decorreu das 15h às 16h30 na moradia do casal.

"É um telemóvel bastante invulgar, demasiado infantil ou efeminado ainda não decidi, aquele que trago no bolso do casaco. 
Tem uma capa de peluche em forma de ursinho amarelo. Tão querido…
Mas para que é que eu fui apanhar esta merda?!
Não o quero para nada. Não tenho filhos nem sobrinhos, até mulher ou namorada que apreciem coisas destas. Não tenciono ir entregá-lo à polícia, com certeza que se poriam logo a gozar. Desde o sub-chefe Silva ao Mendonça do reboque. Mais vale deitá-lo no lixo de vez. Como é que um objecto tão pequeno consegue causar-me tanto desconforto?
Ai, agora está a tocar. A música do Ursinho Misha. Que grande surpresa.
Não, não vou deitá-lo fora. Vou atender e descompor a menina de coro que o perdeu. Para que nunca mais perca esta imbecilidade, ou outra qualquer que possua.

- Estou sim!

- Estou. – responde uma voz anasalada, pouco semelhante à de uma criança normal.

- Olhe, aproveito já para dizer que este telemóvel não é meu. Encontrei-o no chão e espero poder devolvê-lo ao dono o mais rápido possível. Não tenho por hábito falar para ursinhos de peluche, sabe?!

- Nem você nem ninguém, meu amigo. É por isso que me sinto tão só, sabe? – a voz de tão estranha quase que deixava de se ouvir, como a de um boneco animado. – Já agora, tenho o prazer de estar a falar com…

- Bernardino Roupão. Mas quem é você? Sabe onde posso encontrar a dona deste aparelho?

- Muito prazer, Bernardino. Eu sou o Ursinho Tédio… Tédio Bear se preferir. – a conversa estava a tornar-se bizarra. – Costumo perder-me por aí à procura de alguém com quem trocar impressões. Não acontece muitas vezes, dizem que sou chato e que não tenho conversas interessantes. Que provoco o tédio. Por isso, evitam falar comigo e daí eu estar sempre a morrer de tédio… Eh eh eh tem uma certa graça… Estou?

- Estou sim. Isto é uma brincadeira? Vou deixar o telemóvel no banco do jardim, ok?

- Não faça isso! Junto aos pombos, não! – o aparelho parecia berrar de dor enquanto o pousava nas tábuas verdes do assento.

Que dia estranho. E, ao mesmo tempo, entediante."

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Grito mudo

Eu, Paulo Paz, guarda prisional do Estabelecimento Prisional de Sobradeus, Castelo Branco, deixo a transcrição das últimas palavras de Caio Deitado, recluso cego, condenado por homicídio involuntário, falecido a 6 de Abril de 2009.

 

“Por favor, não me deixem aqui.”

 



A última confissão do padre McCallister


Poucos dias após o falecimento do padre católico Jim A. McCallister, foram enviadas duas cartas anónimas de igual conteúdo: uma para o jornal da aldeia natal de McCallister e outra para a Santa Sé.

Um mês depois, o jornal publicava o texto integral da carta:

O amor tem destas coisas: por vezes acaba sem termos tido tempo para o semear como deve ser. Era de manhã cedo quando o padre McCallister me desafiou para ir com ele ver o mar. Do interior do seu imenso anorak recheado de penas de pato, aquele que o fazia assemelhar-se a um grande e obtuso boneco da Michelin, atirou duas pedrinhas à janela do quarto para me fazer acordar com o barulho. Preciso de me confessar. Coisa estranha, pensei eu. Um homem de Deus não se confessa senão a Ele. Eu não era mais do que um acólito. Vá, anda daí, as ondas e as gaivotas esperam por nós. Não é correcto fazê-las esperar. E eu lá fui, contrariado. Cheio de sono e vazio de vontade de o ouvir. Ainda por cima, ele hoje estava particularmente filosófico. Não me agradavam nada os jogos de palavras àquelas horas da madrugada. O que quer dizer com isso? Que eu saiba o amor sente-se bem no meio do peito: é ferida profunda que faz rir e chorar. Não é algo que se semeia. Precisava de contrariar o velho, de deitar por terra aquela conversa barata, aquela toada derrotista. Dediquei toda a minha vida à protecção de um sentimento, para impedir que abandonasse o meio do peito de milhões de pessoas. O que achas disso? Não respondi, não achava nada. Queria voltar para a cama e dormir sobre o assunto. Durante muitos anos, antes de ser padre aqui, viajei por todo o mundo “pela mão” da Santa Sé. A minha missão era preservar o elo mais puro das gentes: aquele que constroem com Deus. McCallister falava com um misto de orgulho e arrependimento. De cada vez que suspendia um suspiro, ocultava um soluço, escondia as mãos trémulas nas algibeiras, eu tinha mais e mais certeza de que aquele momento estava a tornar-se importante. Eu forjava milagres, meu filho. Inventava-os. Era esse o meu trabalho: engendrar estatuetas para que chorassem sangue, hipnotizar pessoas para que vissem anjos, manipular os sentidos para proteger o amor. A minha obra foi o engano. Nunca tinha visto o padre tão nervoso, a sua respiração ofegante causava-me aflição. Procurei reconfortá-lo. Pobre velho ruído pela culpa. É duro descobrir a verdade, meu rapaz. E saber que esta fala de tudo menos de esperança. Levei McCallister de volta para a sacristia, não antes de lhe dar o meu perdão. Tive pena dele. Não temia a morte, temia perder a fé pouco antes de partir. O que sempre temera, acabara de acontecer.

domingo, 5 de abril de 2009

César

decidi aprender espanhol após ser aliciado por um vagabundo despido de restos de cetim.cola debruados a ouro que se apetrechavam como uma vulgar matriosca entreaberta na farpela baptismal de uma igreja hipotecada por leis antiquadas e ultrapassadas por formas quânticas de velocidade.som confrontadas por informações virtuais e verticalmente inseridas na diagonal do horizonte gestual da linguagem portuguesa praticada nas antigas colónias citadas nos melhores livros com as piores encadernações das estórias que conquistam quaisquer graduados pelo exército de letras pequenas automatizadas pelas citações bérberes endémicas venenosas dotadas de pouco cristianismo porém bastante altruismo supracitado numa paralisia de bonequinhos de porcelana apagados por demasiado toque de lesa.pátria redundante de riscas pretas oferecidas por entre oito hipóteses escolhidas pelo acaso de uma situação debilmente extinguível formada por focos de incenso que só se espalha pela noite do primeiro dia do último segundo do próximo ano de meio do milénio emparelhado numa teia de animais.homens.meninos.crianças.bebes.recém.nascidos a partir de um ventre rasteirado por impotente diáspora de cogumelos que se enfrentam num campo de girassóis optimizados em buracos de golfe sem bolas mas com trapézios de um circo circular polar antártico de guloseimas primaveris lacrimejantes e depois de um sonâmbulo escritor romper a própria veia da criatividade numa aparente tentativa de suicídio mal consumada por falta de sangue suficiente para ficar sem sangue e sem forças e sem respirar e sem tentações e sem sensações e sem consciência do próprio ser que se ama no meio de uma floresta de lírios vegetais inocentados num piquenique vegetariano sem modos de educação subscrita em pacto de força que grasna para respirar num atentado corriqueiro e manchado por eczemas satânicos de um cabo que deu cabo do pior amigo inimigo do melhor amigo cuja traição levou à ditadura e consequente deposição de flores em dia próprio por todos os confrades da distância mono.parental equidistantemente medida por vaios de cuspo católico de um padre inocentado no chão de desavinda amálgama titulada num retorno passageiro famigerado por ziguezagues mórbidos de tentações encavalitadas numa estrada soterrada perto do teatro dos comunas da comuna na praça de espanha de lisboa ansiã guardiã desta nação hipotecada por cada desvio de grupos de lacraus em nome próprio indirectamente condicionados pela junta de freguesia outorgada com o prémio de mais limpa na escala de richter eterno retornado que se embriaga para se encharcar com aquosos olhos de apitos a meio de uma partida partilhada de bilhar formoso na pálida construção de uma europa segura e originalmente institucionalizada por entre esgares titubeantes de frinchas impetuosas distribuídas por mesinhas de licra predispostas a sexo anal anual pelo mal e uma ligeira conspurcação acometida de diferendos importados sem importância da improvável instância carnívora parcialmente desenhada com o mijo suado de uma maçaneta sustenida daltónica utilizada rudimentarmente na traseira da dianteira de uma carteira sem canteiro que proteja da chuva a biografia do homem que se senta desde há vinte e três anos para cá todos os dias no mesmo banco da mesma estação a cochichar com estranhos seres unicamente visionados pelos seus estrábicos olhos que cheiram como o minotauro contemplador sem contemplações pela crise agrícola do garrafão esférico abandonado num selo do carro colado no assento de uma mota com quarenta rodas todas pontinhos escuros de amálgama biscariante acentuada num ambiente descontraído de trabalho de promoção de inscrições cibernéticas num determinado portal precedido de três duplos.vês inusitados por sinuosa sinusite crónica migrada pelos excrementos evitados acutilar de desordenada bifurcação tripla par de pediatras orgulhosos da sua retórica amputada num frenesim turístico de caixeiro pouco viajante mas bastante caixa de óculos com paletes e alteres do chão ao tecto passando pela portagem da vida e encostando a própria vida por migalhas que fazem espirrar colonos assimétricos medidos com régua esquadro do picasso que outrora foi tão íntimo de uma asa partilhada por duas borboletas gémeas e com um terceiro coração financeiro que soltam recursos estilísticos barra literários numa feira de enchidos com sacos vazios de venenos e micróbios vorazes capazes de datar em pranto prontas alienações de terrenos visados por avisos fluorescentes pintados em apneia numa catadupa de anti.gravidade geral das partículas da minha pequena irmã mais velha resultado de anos de luzes em contra.mão sorteadas nas têmporas do meu paizinho também filho mas desigual em volume da gástrica dimensão do gerúndio camafeu impregnado em estóicos pepinos descascados por unhas animais de pesticidas canibais do dormente. Matei porque deixou de me amar!

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O fino

Fernando Fino amaldiçoou o seu nascimento desde o dia que aprendeu a amaldiçoar. O que é isto de viver sem o querer?

Cresceu no Redondo e nunca parou de crescer. Amaldiçoou a ironia do seu local de nascença. Morbidamente obeso nunca conheceu o sabor da fome. O que é isto de não saber o que é comer e encher as entranhas sem nunca se completar? Amaldiçoou a maldade do seu apelido.

Viveu sentado numa tábua de dois por quarto pregada por ele em oito bilhas de gás verdes na porta de uma leitaria de beira de estrada. Todos os dias a limpar o suor da testa com o pulso que não conhecia. Todos os ossos escondidos debaixo das planícies da sua carne.

Fernando Fino foi um sortudo, escolhido pelo distrito local. Seria operado numa operação nova onde lhe retirariam mais de metade de si numa operação nada complicada. Teria as miudezas sufocadas por uma rede e saberia finalmente o que seria caminhar.

Amaldiçoou enquanto pôde amaldiçoar o dia em que o fizeram.

Não resistiu.  Nem nunca se viu.

Morreu já só metade de si, provavelmente com a metade que não interessava.

A outra, feita mais dele do que a que jaz na terra, conserva-se pelos quintais, nas árvores e nas plantas.

Essas que amaldiçoam não ter voz para perguntarem como ele

O que é isto de se viver sem o querer?

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Morreu Março

Há dois dias atrás, morreu Março.
Abril avaliou-o a meio de Fevereiro e, na altura, elaborou um ensaio crítico acerca da sua pessoa.
Crítico factual. Nunca destrutivo.

Prestamos-lhe assim homenagem com a transcrição dessas palavras:


"Março é um velhote megalómano.

Convencido que é primeiro,
que é romano e marinheiro.

É só um pobre diabo com a mania das grandezas
e com pressa de navegar.

Usa uma toga branca e por baixo está nu.

Despido de lucidez,
carregado de manhas,
ajeita a coroa de louros com pose de imperador.

Já no peito,
impera a dor.

E assim é Março,
na sua eterna incongruência,
que arrasa a paciência de quem o tenta entender."

grânulo mineral

costumo.me enternecer quando fantasio com submarinos amarelos,
improvavelmente a navegar nas profundidades de um afogamento nas nossas profundezas,
os submarinos amarelos, contrariamente a músicas que se lhes dedicam e os tornam famosos,
são pedaços deliquescentes de homens e mulheres alarves, vulgo alcoólatras,
bífidas tânagras com insuficiências renais derivadas de miasmas etílicas.
e pois é isto que explana o meu compadecer,
é por ser misantropo de sangue num mundo sanguinário que desprezo a sociedade,
acumulando.me junto aos detritos lânguidos depositados na mais profunda cavidade marítima.