segunda-feira, 13 de abril de 2009

A última confissão do padre McCallister


Poucos dias após o falecimento do padre católico Jim A. McCallister, foram enviadas duas cartas anónimas de igual conteúdo: uma para o jornal da aldeia natal de McCallister e outra para a Santa Sé.

Um mês depois, o jornal publicava o texto integral da carta:

O amor tem destas coisas: por vezes acaba sem termos tido tempo para o semear como deve ser. Era de manhã cedo quando o padre McCallister me desafiou para ir com ele ver o mar. Do interior do seu imenso anorak recheado de penas de pato, aquele que o fazia assemelhar-se a um grande e obtuso boneco da Michelin, atirou duas pedrinhas à janela do quarto para me fazer acordar com o barulho. Preciso de me confessar. Coisa estranha, pensei eu. Um homem de Deus não se confessa senão a Ele. Eu não era mais do que um acólito. Vá, anda daí, as ondas e as gaivotas esperam por nós. Não é correcto fazê-las esperar. E eu lá fui, contrariado. Cheio de sono e vazio de vontade de o ouvir. Ainda por cima, ele hoje estava particularmente filosófico. Não me agradavam nada os jogos de palavras àquelas horas da madrugada. O que quer dizer com isso? Que eu saiba o amor sente-se bem no meio do peito: é ferida profunda que faz rir e chorar. Não é algo que se semeia. Precisava de contrariar o velho, de deitar por terra aquela conversa barata, aquela toada derrotista. Dediquei toda a minha vida à protecção de um sentimento, para impedir que abandonasse o meio do peito de milhões de pessoas. O que achas disso? Não respondi, não achava nada. Queria voltar para a cama e dormir sobre o assunto. Durante muitos anos, antes de ser padre aqui, viajei por todo o mundo “pela mão” da Santa Sé. A minha missão era preservar o elo mais puro das gentes: aquele que constroem com Deus. McCallister falava com um misto de orgulho e arrependimento. De cada vez que suspendia um suspiro, ocultava um soluço, escondia as mãos trémulas nas algibeiras, eu tinha mais e mais certeza de que aquele momento estava a tornar-se importante. Eu forjava milagres, meu filho. Inventava-os. Era esse o meu trabalho: engendrar estatuetas para que chorassem sangue, hipnotizar pessoas para que vissem anjos, manipular os sentidos para proteger o amor. A minha obra foi o engano. Nunca tinha visto o padre tão nervoso, a sua respiração ofegante causava-me aflição. Procurei reconfortá-lo. Pobre velho ruído pela culpa. É duro descobrir a verdade, meu rapaz. E saber que esta fala de tudo menos de esperança. Levei McCallister de volta para a sacristia, não antes de lhe dar o meu perdão. Tive pena dele. Não temia a morte, temia perder a fé pouco antes de partir. O que sempre temera, acabara de acontecer.

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