sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Fernando Lagarto descobre que vai morrer

A Fernando Tita Ferreira, chamavam-lhe Fernando Lagarto na escola. Isso porque tinha a derme da mão esquerda a escamar, como se da pele de um réptil se tratasse. A maleita, conhecida por psoríase, alastrou-se do joelho direito para o interior da coxa oposta; daí seguiu para os três primeiros dedos do pé que estava mais à mão, fintou toda a zona da anca e acabou por alojar-se na mão esquerda. Nunca nenhum médico conseguiu explicar o porquê deste súbito problema, só sabem dizer que desapareceu magicamente quando o jovem completou oito anos.

Foi mais ou menos nessa altura que Fernando Tita Ferreira descobriu a obra de Pessoa, ao perceber que morava numa cidade chamada Lisboa e que afinal esta até estava bastante longe de Rejkiavik. Foi uma verdadeira surpresa. Durante algum tempo, Fernando fazia questão de ir para as aulas com um bigode semelhante ao do poeta, pintado com marcador. Os bofetões resultantes de tamanha extravagância fizeram voltar a psoríase, mas desta feita a doença apenas atingiu as amígdalas. Todos ficaram aliviados por não estarem à vista.

Fernando Tita Ferreira cresceu a amar a alma lisboeta, a forma como inspirava os artistas, o quão diferente e incrivelmente igual conseguia ser da Hungria e de alguns países árabes. "Só uma cidade assim podia ter gerado o génio pessoano", pensou um dia. O mesmo dia em que, ao descer a Rua Garrett, descobriu que não lhe restavam muitos anos de vida. Não, a psoríase não era fatal. Apenas sabia que os seus dias estavam a chegar ao fim, a empurrá-lo para o chão com cada vez mais força. A sua própria vida queria dar de si. Parecia-lhe lógico que assim fosse.

Nessa mesma noite, Fernando Tita Ferreira chegou a casa e rejeitou o caldo de míscaros que a mãe tinha cozinhado na semana anterior. Sentou-se à secretária do seu quarto, com vista para a luz amarelada da rua, suspirou três vezes e terá escrito o seguinte texto:


Sulcos profundos
por Fernando Tita Ferreira, 1979



As pegadas na calçada pregaram sulcos profundos.


Buracos que persistem
como poços em silêncio.

Pingam,

pingam,

pingam,

pingam sem paz
mas duram para sempre.

Para sempre.


Cheio do gotejar,
não te deixa deixar o Chiado,
enfim a morrer.

Mas nunca morres…


Estás comigo, do meu lado.
Vestes a roupa que eu visto.
Fazes tudo o que eu faço.

Enquanto os sulcos da calçada,
(de onde nunca brotam flores)
na paisagem branca ou branca suja
imagino a tua imagem
como alguém que não descansa
e não pára de agitar a mão.


Deixaste poços no Chiado
que gotejam sem parar.

2 comentários:

  1. Adoro certos pormenores deste e do texto do Pintarolista! Quem é que nos pára? ahah

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  2. Eu gosto da criação poética. Gosto disso, acima de tudo!

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